sexta-feira, 18 de outubro de 2019

Coringa e a fabulosa arte do ardil


Nos artigos que costumo escrever aqui para o blog tento ao máximo evitar o didatismo, sempre procurando estabelecer uma conversa com quem está lendo.
Contudo, confesso que quando me propus a escrever este artigo sobre o filme “Coringa”, vi que tal tarefa não escaparia de uma explicação mais didática.
Então... Vamos lá!


Foi com bastante estranheza e interrogações que muita gente (e eu me incluo nisto) recebeu a notícia que um filme do Coringa, o icônico inimigo do Batman estaria em produção.
Um filme completamente em separado de tudo que se viu com os personagens da DC Comics nos últimos anos.
Uma proposta ousada? Ou chute no último minuto após várias “bolas na trave”?
Bem, na modesta opinião deste escriba após assistir o filme, nem uma coisa nem outra. Coringa é um filme extremamente bem pensado, e chutes em cinema de forma alguma tem este resultado. Aliás, milimetricamente bem pensado, e daí já podemos descartar a tal “ousadia”.


Coringa é, sobretudo, um amálgama extremamente bem feito de várias influências, e trouxe à tona assuntos que já tinham sido abordados em diversos outros filmes, inclusive com personagens da DC, mas que aqui são “pintados” com cores mais fortes para que até o mais disperso dos espectadores não ficasse indiferente ao que acontece.
Duvida? Tudo bem. Então peço licença para um pouco de didatismo.
Para qualquer um que veja Coringa, e tem o referencial devido, fica escancarado que suas maiores influências são “O Rei da Comédia” e “Taxi Driver” de Martin Scorcese, em especial este último, que como Coringa possui o fio condutor de um cara solitário, vivendo uma vida horrível em meio a uma cidade decadente e ao tentar emular uma relação platônica do protagonista com Sophie (Zazie Bets), como o personagem de Robert DeNiro com a personagem de Cybil Shepard.

Robert DeNiro em dois momentos - O Rei da Comédia (acima) e Coringa

Não à toa escolheram ambientar Coringa em 1981. E não por acaso temos a presença de DeNiro no filme.
Fora isto pode se sentir no escopo do roteiro de Coringa, uma razoável dose de inspiração de “Um Estranho no Ninho” de Milos Forman. Só que neste caso, como se toda a cidade de Gotham e seus sistema fosse um imenso hospício.
E falando no tal “sistema”, nas entrelinhas não é difícil perceber ali até uma dose de “Batman O Cavaleiro das Trevas Ressurge” em toda a discussão social que é levantada, em nada diferente do discurso de Bane no terceiro episódio da trilogia de Cristopher Nolan.


Aliás, em ao menos dois takes distintos, fica bem clara a influência da trilogia do Batman de Nolan, e a homenagem que o diretor Todd Philips resolveu fazer de forma rápida.
E toda esta parte do filme funciona com a precisão de um relógio suíço.
Posto isto, entramos naquilo que Coringa tem ao mesmo tempo de melhor e de pior, ou seja, sua própria história, e saga de Arthur Fleck (A.Fleck?... hummmmm) um sujeito solitário com um histórico de doença mental, que tenta cuidar da mãe que descobrimos ter também seu próprio histórico de problemas psiquiátricos.


Um roteiro absurdamente bem escrito, e extremamente ágil para o drama que se propõe ser, e que propositalmente foi feito da forma que foi para causar certo nível de confusão na mente de quem assista, como que num mecanismo para fazer o espectador entrar na mente de Arthur Fleck, que obviamente é uma bagunça. Mas uma bagunça que vai se ordenando, ainda que de forma nada saudável até explodir.


E aqui começa os problemas (ainda que pouco relevantes) de Coringa.
Ainda que se possa argumentar que este filme seja uma história estilo elseworlds, ou seja, uma nova visão sobre o personagem fora do escopo mais conhecido, sem compromisso de fidelidade integral. Não podemos virar os olhos para o fato que Coringa extrapolou o direito de ser uma versão alternativa ou avulsa.
E se estiverem se perguntando qual seria um bom exemplo de elseworlds, minha resposta é a HQ “Alienígena Americano”, onde o autor Max Landis reconta as origens de Clark Kent antes de se tornar Superman.
Pois nas palavras do próprio Landis esta HQ não é uma história do Superman e sim de Clark Kent. Ou seja, tudo a ver com Coringa, que antes de tudo, é uma história sobre Arthur Fleck, e não o alterego que viria a assumir.


Só que aqui, ao contrário da HQ de Landis em que se reconhece que ali não poderia estar mais ninguém que não fosse o filho de Jonathan e Martha Kent, em Coringa se obliterarmos o título do filme, iremos ver que qualquer um poderia estar ali, tanto que no momento em que Fleck comete suas primeiras mortes, a cena me lembrou demais o clássico Desejo de Matar. Mas o original com Charles Bronson, por favor, nada de remake.
Fora, lógico, a absurda diferença de idade entre este Coringa e um Bruce Wayne ainda criança.
Mesmo que possamos identificar ali pinceladas de algumas versões do Coringa nos quadrinhos, em especial o de “Piada Mortal”, é necessário enfatizar que o personagem é um psicopata em sua essência, e isto não se vê de fato, pois até o momento do “despertar” do Coringa, todas as mortes que Fleck causa são em momentos de pressão ou sob forte confusão psicológica e emocional.


O que nos remete ao tratamento dado ao personagem aqui, tratando-o como um anti-herói, tentando criar empatia com o público, numa representação bem próxima ao que o Bane de “Cavaleiro das Trevas Ressurge” tenta, ao se “vender” para o povo de Gotham ao isolar a cidade do resto do mundo.
Ou seja, pegaram o ardil de Bane, e usaram para escopo deste filme, vendendo-o como um filme do Coringa, quando na verdade poderia ser o filme de qualquer personagem com qualquer nome.


O que não desmerece o filme em nada, pois é magnífico como estudo de personagem, e extremamente pertinente em levantar várias questões, inclusive de como se dá o tratamento aos doentes mentais em nossa sociedade, mas que definitivamente só o título para caracterizar o filme como filme do “Coringa”.
A sagacidade de seus realizadores que tiveram ótima sapiência em utilizar o mundo de Gotham para este estudo de personagem é digna de nota, mas que com certeza não atrairia tanto as atenções se fosse feito de uma forma, digamos, comum.
Nos remetendo aquilo que citei no começo deste artigo.
Coringa é ousado? Não!
Assim como a magnífica interpretação de Joaquim Phoenix, que é de encher os olhos, talvez a melhor da carreira do ator, mas que não surpreende ao ponto de se pensar “Como este cara fez isto?”. Já que o personagem é intenso demais, mesmo em seus momentos mais íntimos de melancolia, nos remetendo a outras atuações de Phoenix, não chegando a surpreender este escriba da mesma forma que o sutil Jim Gordon de Gary Oldman, só para citar um exemplo.

O diretor Todd Philips e Joaquim Phoenix recebendo o Leão de Ouro no Festival de Veneza
A execução de Coringa beira a perfeição, um filme muito raro nos massificados dias de hoje, e que soube não cair nas armadilhas roteirísticas e conceituosas feitas para se agradar a tal crítica especializada, e os componentes de júri de festivais (que eu costumo chamar de festivalianos), ainda que tenha ganho o Leão de Ouro no Festival de Veneza. Mais um ponto para o filme.


Mas que tem sobre si o peso de seu título, que ao mesmo tempo em que é sua grande arma, também é seu “calcanhar de Aquiles”.
Presenteando-nos com um legítimo ardil, digno de seu personagem título, ainda que qualquer um pudesse estar ali.



2 comentários:

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