Estamos
no ano de 2032. Setes anos antes, Tóquio tinha sido literalmente dividida em
duas por um grande terremoto, que também serviu para expor de forma escancarada
a divisão social da cidade, vivendo sob a sombra do conglomerado empresarial
chamado GENOM e sua torre, que através de seu poder econômico na prática era
uma espécie de governo paralelo.
Uma
sociedade onde a mão de obra humana tinha sido substituída na maior parte pelos
Boomers, androides produzidos pela mesma GENOM, que por vezes resolvia usar as
ruas da agora rebatizada “Mega Tóquio” como campo de testes de seus produtos,
ignorando toda e qualquer autoridade pra isto.
Mas
em meio a este ambiente de caos urbano, quatro vigilantes (e em alguns momentos
mercenárias), vestidas com tecnológicas armaduras, autodenominadas Knight
Sabers surgem para combater a injustiça.
E é
com este argumento inicial que em 1987 o mundo é apresentado a uma das melhores
series de OVA, e por que não um dos melhores exercícios de futurologia já feitos, falo de...
Bubblegum Crisis!
Contando
com cerca de oito episódios (sendo que uma lenda urbana dá conta que o previsto
seria treze), Bubblegum Crisis é numa olhada menos atenta uma tremenda
miscelânea de diversas inspirações que passam obrigatoriamente pelos clássicos
“O Exterminador do Futuro” do qual ao menos os Boomers de combate são
explicitamente inspirados, e também por “Blade Runner” do qual muito se inspira
no visual de Mega Tóquio.
Boomers de combate - Inspiração direta de Exterminador do Futuro |
Mas
isto sempre foi algo absolutamente claro, tanto é que Priss Asagiri, a mais
durona das Knights Sabers, era uma cantora que tinha uma banda que se chamava
justamente “Priss and the Replicants”. Lembrando que Priss também era o nome da
personagem de Daryl Hannah em Blade Runner.
Juntamente
com Priss completavam o time das Sabers: Sylia Stingray, a líder do grupo e
filha mais velha de um antigo cientista da GENOM que secretamente criou as
armaduras chamadas hard suits, usadas
pelas heroínas; Nene Romanova uma policial; e Linna Yamazaki uma ex-bailarina.
Nene, Linna, Sylia e Priss - As Knight Sabers |
Ainda
recebendo a ajuda de Mackie, irmão mais novo de Sylia, o único, que junto com
um cientista aposentado, sabiam das identidades das Knights Sabers.
Mas
como todos os vigilantes, suas ações obviamente ilegais, despertam a ação das
autoridades, em especial de Leon McNichol, policial veterano da AD Police, uma
divisão a parte da polícia que investigava crimes de alta tecnologia, em
especial aqueles realizados por Boomers que, ou surtavam por algum defeito, ou
eram usados por seus proprietários, coisa que a GENOM lógico fazia a torto e a
direito.
Leon McNichol |
Então,
afinal o que esta animação japonesa tem de diferente de tantas outras dentro do
conceito de cyber punk?
Primeiro
é preciso entender a própria história desta animação, pois Bubblegum Crisis a
princípio fracassou em seu país de origem. Entenda-se aí fracasso uma
receptividade baixa em relação ao que os produtores da série, os estúdios
Artmic e Youmex esperavam. Mas foi quando BBC (sigla pela qual a franquia é
também conhecida) atravessou o oceano indo aportar nos Estados Unidos, que o
jogo começou a virar.
Ainda
que naquela época, as animações nipônicas já tivessem certa popularidade em
terras de Tio Sam, suas vendas diretas ao público eram extremamente restritas a
uma parcela específica de público.
Mas
Bubblegum Crisis, seja pelas sequências de ação, seja pelo afiado senso de
humor de alguns de seus diálogos, as referências aos clássicos já citados do
cinema estadunidense ou até mesmo pelas suas ótimas canções que eram não só um
diferencial como um dos maiores atrativos da animação arregimentou uma legião
de fãs.
Canções
que não se repetiam, tendo temas para cada novo episódio, cada um com uma
abertura diferente, oque dava a cada novo capítulo uma identidade pessoal.
Isto
dentro de uma animação que se eu fosse resumir em uma palavra seria “equilíbrio”.
Mas por que “equilíbrio”?
Bem,
se você que está lendo tem um contato maior com este universo de animes, deve
saber de cátedra o quanto vários deles são proposital e/ou desnecessariamente
apelativos na tentativa, por vezes até bem sucedida, de conseguir parcelas de
público.
Só
que Bubblegum Crisis, possui algumas características que se não são
exclusividade da animação se tonaram bastante raras com o tempo, como os
roteiros que apesar de toda a ambientação futurista primavam por tratar na
maioria das vezes das relações interpessoais. Sempre aproveitando para
questionar o quanto as megacorporações interferiam nas vidas das pessoas e o
quanto isto era nocivo, antevendo em algumas décadas algumas realidades que até
já existiam na época, mas que pareciam maximizadas demais quando a animação foi
produzida.
Fora
isto, ou até mesmo dentro deste gancho, ainda há o implícito triângulo (não
necessariamente amoroso) que envolvia Priss, Leon e Dailey Chong o parceiro de
trabalho de McNichol. Basicamente para se entender: Leon era a fim de Priss que
era lésbica, sendo que Dailey que era gay era a fim de Leon e não perdia uma
oportunidade de fazer uma insinuação ou piada que deixasse o policial numa
“saia justa”, criando ganchos cômicos excelentes.
Leon, Dailey e a AD Police |
Mas
em meio tantos pontos positivos, há os negativos?
Na
opinião deste escriba, talvez o grande ponto negativo de Bubblegum Crisis
resida que várias de suas situações e ganchos de continuidade ficam meio que no
ar sem uma explicação definida, oque de certa forma pode confirmar a teoria do
projeto de treze episódios que citei.
Tanto
que a forma como as Knight Sabers se reuniram acabou sendo contada apenas num
videoclipe para a música “Asu E Touchdown" que faz parte da trilha sonora
do terceiro episodio, “Blow Up".
Contudo,
o sucesso alcançado possibilitou que BBC ganhasse uma série prequel chamada AD Police Files. Esta
com um tom bem mais sério e até mesmo mais pesado que a “série mãe“, se
passando em 2027, quando a AD Police começava a se estruturar, mais parecendo
um exército de mercenários. E tem como personagem principal, ainda que não
necessariamente central, Leon McNichol.
Em AD Police, Leon ainda é um novato transferido da "polícia comum" |
AD Police File #1 - A Mulher Fantasma |
AD Police File #2 - O Estripador |
AD Police File #3 - O Homem que Mordia a Língua |
Mas
a situação da franquia em terras nipônicas pouco se alterou em termos de
receptividade na época, oque gerou o rompimento entre o Artimic e o Youmex. Talvez
por isto o último episódio de BBC, “Schoop Chase Lisa" ao contrário dos
anteriores que foram progressivamente ganhando em qualidade, pareça mais do
mesmo, destoando inclusive do caracter
design da série que conforme foi
passando foi evoluindo para um traço cada vez mais realista.
Seria
então o fim das Knight Sabers?
Bem,
ainda não, pois mesmo depois do rompimento da parceria com o Youmex, o estúdio
Artmic resolveu ainda investir em Sylia e companhia, produzindo de uma só vez
três episódios que ganharam o nome de Bubblegum Crash. Uma espécie de
minissérie que conseguiu manter algumas características da obra original, em
especial por recuperar caracter design de Kenichi Sonoda perdido no
último episódio de Crisis.
Esta
seria uma espécie de versão comprimida do final do projeto original, mas acabou
perdendo, e bastante, no que diz respeito ao roteiro, justamente, ao menos a
meu ver, por passar batido por aqueles elementos humanos que citei alguns
parágrafos acima.
Um dos esboços de Kenichi Sonoda para o maquinário de BBC |
Fora
o fato que a Youmex processou a Artmic, numa briga judicial que se arrastou até
a falência da Artmic no fim dos anos 90, cujo espólio hoje pertence a outro
estúdio, o AIC.
Ainda
sim, o boca a boca, e o bom e velho “contrabando” de fitas VHS, já havia
transformado a pequena centelha em fogaréu, fazendo a saga Bubblegum Crisis não
apenas conhecida, como cultuada em várias partes do mundo, isto bem antes da
internet ter virado este universo que conhecemos hoje.
E
os fãs... Ahhh... Os fãs... Aqueles que por mais de uma vez citei aqui, que não
deixam o objeto de sua paixão morrer, novamente entraram em cena. Desta vez na
figura do escritor e quadrinista norte-americano Adam Warren, um dos primeiros
artistas estadunidenses a desenhar e publicar trabalhos no estilo mangá, que
escreveu uma série de HQ’s chamada, Bubblegum Crisis: Grand Mal.
Fora os óbvios "mangás", BBC ganhu uma versão norte-americana em HQ |
Até
que em março de 1999 chega o retorno das Knight Sabers à sua mídia original.
Era
Bubblegum Crisis 2040. Não uma continuação, mas sim um reeboot. Uma série para tevê que teve 26 episódios e acabou sendo o
primeiro contato de muita gente com o universo BBC, mas que infelizmente não dá
pra dizer que tenha sido um bom contato, pois todos os elementos que faziam de
Bubblegum Crisis algo quase único, foram sumariamente exterminados.
Da
trilha sonora que passou das ótimas composições estilo pop/hard rock, para um
eletrônico pra lá de irritante, passando pela mudança de personalidade dos
personagens que foram absolutamente descaracterizados, até chegar a se tentar
emular um romance fofo tradicional entre Priss e Leon.
Só servindo
para reforçar a lenda de Mega Tóquio e suas justiceiras em armaduras de titânio
como um dos melhores trabalhos de animação já produzidos na terra do sol
nascente.
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