terça-feira, 19 de abril de 2022

Ary Fernandes - O Pai dos Seriados Brasileiros

 

Hoje com todos os recursos digitais disponíveis, joint ventures com produtoras estrangeiras e até com um público considerável, capaz de assimilar com mais facilidade o conteúdo de seriados de ação e aventura para a tela pequena, vemos surgir séries, em geral feitas para o streaming, que procuram recriar ao nosso modo aquilo que a maioria de nós cresceu vendo apenas os norte-americanos e os japoneses com seus tokusatsus fazerem.

Mas houve um homem, que numa época em que se faziam passeatas contra guitarra elétrica em Terra Brasilis, acreditou num sonho. Criar heróis genuinamente brasileiros.

Seu nome? Ary Fernandes!

Nascido em 31 de março de 1931, Ary iniciou sua carreira como locutor de rádio em 1949. Tendo em 1952 sua primeira experiência cinematográfica como assistente no filme “O Canto do Mar”.

E se tornou um dos pioneiros de nossa tevê, quando da chegada da “novidade” em nossas terras. Contudo, ao contrário dos demais colegas contemporâneos que pensavam na teledramaturgia da época apenas como veículo para adaptações de romances de escritores como Machado de Assis ou Joaquim Manuel de Macedo, o jovem Ary, que cresceu assistindo as matinês de cinema e seus seriados, sempre teve em mente que precisávamos ter nossos próprios heróis.

E com esta ideia em mente, em 1958 iniciou o projeto que viria a mudar a cara da tevê brasileira, O Vigilante Rodoviário.

Contando as aventuras de inspetor Carlos (Carlos Miranda) e seu fiel companheiro o cão Lobo pelas estradas do Brasil.

Contudo, se lá no exterior, convencer anunciantes e produtores de que uma ideia é boa para se investida já era complicado, imagina em Terra Brasilis desta época. Sendo assim, apenas em 1959, foi produzido o episódio piloto, chamado “O Roubo do Diamante Gran Mongol”, tendo sua estreia ocorrido pela extinta Tevê Tupi só em março de 1961 quando estavam já prontos cerca de 10 episódios.

Devido as várias dificuldades técnicas da época, até para se duplicar um filme em película, o seriado era exibido as quartas-feiras em São Paulo, e mal terminava já viajava de carro para o Rio de Janeiro onde era exibido na quinta-feira.   

Mas isto não impediu que as aventuras do inspetor Carlos e Lobo causassem uma verdadeira revolução em nosso país, chegando a ter índices de audiência que dependendo da região do país variavam de 90% até 100%!

Ou seja, Vigilante Rodoviário era uma final de Copa do Mundo toda semana!

Com o sucesso e vislumbrando alcançar um público maior, já que ainda era bem baixo o número de aparelhos de televisão em nosso país na época, a série chegou aos cinemas em 1962 com o longa-metragem “O Vigilante Contra o Crime” e dois anos depois com “O Vigilante em Missão Secreta”.

O inspetor Carlos e Lobo - Dupla inseparável

Um feito que só Arquivo X foi capaz de repetir nos anos 1990, já que o longa-metragem do Batman derivado do seriado de 1966 pode até ter ido parar nos cinemas, mas foi pensado originalmente como um telefilme.

Mostrando que a aposta de Ary Fernandes estava mais que acertada ao criar seu personagem pensando na simpatia que a Polícia Rodoviária possuía com as pessoas da época.

Mas nenhuma escolha de Fernandes foi tão certeira quanto Lobo!

O SRD (Sem Raça Definida), filho de um pastor alemão com uma SRD, não apenas encantava a todos, como se tornou um caso único na história do audiovisual mundial.

Lobo - A grande estrela do seriado

Nascido em 1955, Lobo tinha como tutor um soldado da extinta Guarda Pública, e quando iniciou seus trabalhos na série até já era conhecido no meio publicitário por alguns trabalhos, mas o que Ary Fernandes nem imaginava era que seu ator canino se tratava de um indivíduo muito acima dos demais.

Pois o que poucos sabiam era que Lobo já acompanhava seu tutor nas rondas diárias pelo bairro, isto sem nenhum tipo de treinamento específico para tal, já estando mais que acostumado com aquele tipo de ação, o que fazia com que as filmagens dos episódios em geral ocorressem sem o menor tipo de contratempo.

Só para se ter uma ligeira ideia, no clássico seriado “Rin Tin Tin”, eram usados nada menos que dezoito cães diferentes para realizar cada ação que se via na tela. Mas Lobo fazia tudo sozinho, sem ter passado por nenhum tipo de adestramento específico.

Vou até me permitir um momento de empolgação neste texto, e afirmar que Lobo é até hoje o melhor representante da nossa miscigenação brazuca.

O único incidente sério que ocorreu durante filmagens, foi quando Lobo acidentalmente sofreu uma queimadura em sua cauda, ao encostá-la no cano de descarga da moto Harley&Davison do inspetor Carlos, obrigando a produção a trocar a moto pelo famoso Simca Chambord.

Carlos Miranda após se aposentar da Polícia Rodoviária

A identificação de Carlos Miranda com o personagem que vivia foi tanta, que o ator ao fim do seriado acabou ingressando de fato na Polícia Rodoviária de São Paulo, onde atuou em vários cargos, mas que graças a fama e prestigio dado pelo seriado, se tornou porta-voz e relações públicas da corporação.

Vigilante Rodoviário teve um total de três temporadas e 38 episódios, cujo o último foi transmitido originalmente em maio de 1967. um sucesso tamanho que até nos quadrinhos foi parar.

Mas Ary Fernandes queria mais, e em março de 1968 o público brasileiro era apresentado ao esquadrão “Águias de Fogo”.

Com uma abertura que para a época devia ser algo impressionante, mostrando os poderosos caças ingleses Gloster Meteor que a FAB operava naqueles tempos, Águias de Fogo apresentava as aventuras de um time de aviadores da nossa força aérea, formado pelo Major Ricardo (Dirceu Conte), o sargento Fritz (Edson Pereira) que apesar de nome era afrodescendente - ao que parece Ary Fernandes gostava de provocar os nazis - especialista em comunicações, o Aspirante Fábio (Roberto Bolant), piloto novato que costumava ser o “alívio cômico”, e Capitão César (interpretado pelo próprio Ary Fernandes), em missões que na maioria das vezes tratavam de resgates, mas que por vezes remetiam a filmes de espionagem.

Como no episódio “O Invento” no qual um cientista que havia perdido seu filho aviador na guerra (2ª Guerra para ser mais preciso, o seriado é de 1968), desenvolve um novo tipo de combustível que mesmo em grandes quantidades não se incendiava. E obvio que a invenção desperta o interesse de nações estrangeiras e de espertalhões que pretendem fazer fortuna vendendo a fórmula.

O esquadrão Águias de Fogo

Mesmo com o apoio oficial, Águias de Fogo era um projeto caro, e sua produção foi encerrada com apenas 26 episódios produzidos, mas não sem antes quase conseguir um feito histórico.

Pois hoje até podemos estar acostumados com crossovers entre seriados diferentes, especialmente quando fazem parte de uma única franquia como é o caso dos diversos CSI. Mas na época isto era algo que não acontecia, tendo historicamente seu primeiro caso ocorrido na série do Batman protagonizada por Adam West, no icônico episódio que promoveu o encontro entre Batman e Robin com Besouro Verde e Kato.

Mas aqui no Brasil, Ary Fernandes também brindou seu público com um destes encontros. No episódio “Imprevisto”, uma menina chamada Ritinha, que morava numa comunidade extremamente isolada no interior do Brasil (e não esqueça, é o Brasil da década de 1960, aqui isolado é isolado mesmo!) passa mal de repente. A mãe da menina a leva até a cidade mais próxima, mas o médico do local estava em viagem, e somente a união de nossos heróis poderia salvá-la.

Sim! O esquadrão Águias de Fogo une forças ao inspetor Carlos, o vigilante rodoviário, e seu fiel amigo Lobo. E enquanto os aviadores vão buscar a menina, os policiais (sim, usei plural, pois Lobo também entra na conta) vão buscar o médico.

Os Águias de Fogo e o Inspetor Carlos unem forças no crossover "Imprevisto".

Tais seriados hoje, aos olhos dos mais jovens, mesmo os acostumados com os pueris (em sua maioria) filmes de super-heróis feitos em frenéticas linhas de montagem, podem parecer tolos, mas em sua época foram absolutamente revolucionários, “colocando no bolso” diversas produções estadunidenses que a bem da verdade até nem fazem mais sentido no mundo em que vivemos hoje.

Em 1978 como parte de um projeto da extinta (ufa!) Embrafilme, Ary Fernandes tentou criar uma nova versão para Vigilante Rodoviário. Mas tem coisas que não dá para fazer duas vezes, e seja por dificuldades da própria Embrafilme, ou o fato de agora terem de utilizar nada menos que cinco cães dos quadros da Polícia Militar paulista, já que Lobo faleceu em 1971, a coisa toda não passou do episódio piloto.

Em 2009, Ary Fernandes selou um acordo com um canal por assinatura para a recuperação dos originais de suas criações. Sendo que do “Vigilante Rodoviário” 35 dos 38 episódios originais conseguiram ser recuperados, e de “Águias de Fogo” 22 dos 26 originais foram salvos.

Com passar dos anos, além de escritor, produtor, diretor, Fernandes “emprestou” seu dom de ator para algumas dublagens lendárias.

Como o Rocko de “A Vida Moderna de Rocko”.

A primeira voz do detetive Bowman de Superman TAS.

E até foi Albion de Cefeu, o mestre de Hyoga de Cisne em Cavaleiros do Zodíaco.

Então, toda vez que se lembrar que os Estados Unidos tiveram Irwin Allen, ou o Japão teve Eiji Tsuburaya, não se esqueça que nós aqui também tivemos nosso pioneiro, que contra todas as expectativas, fez do sonho realidade, e que com a coragem digna de seus personagens fez história encantando tantos por tanto tempo.

 

 

 

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