Hoje
com todos os recursos digitais disponíveis, joint
ventures com produtoras estrangeiras e até com um público considerável,
capaz de assimilar com mais facilidade o conteúdo de seriados de ação e
aventura para a tela pequena, vemos surgir séries, em geral feitas para o streaming, que procuram recriar ao nosso
modo aquilo que a maioria de nós cresceu vendo apenas os norte-americanos e os
japoneses com seus tokusatsus fazerem.
Mas
houve um homem, que numa época em que se faziam passeatas contra guitarra
elétrica em Terra Brasilis, acreditou num sonho. Criar heróis genuinamente
brasileiros.
Seu
nome? Ary Fernandes!
Nascido
em 31 de março de 1931, Ary iniciou sua carreira como locutor de rádio em 1949.
Tendo em 1952 sua primeira experiência cinematográfica como assistente no filme
“O Canto do Mar”.
E
se tornou um dos pioneiros de nossa tevê, quando da chegada da “novidade” em
nossas terras. Contudo, ao contrário dos demais colegas contemporâneos que
pensavam na teledramaturgia da época apenas como veículo para adaptações de
romances de escritores como Machado de Assis ou Joaquim Manuel de Macedo, o
jovem Ary, que cresceu assistindo as matinês de cinema e seus seriados, sempre
teve em mente que precisávamos ter nossos próprios heróis.
E
com esta ideia em mente, em 1958 iniciou o projeto que viria a mudar a cara da
tevê brasileira, O Vigilante Rodoviário.
Contando
as aventuras de inspetor Carlos (Carlos Miranda) e seu fiel companheiro o cão
Lobo pelas estradas do Brasil.
Contudo,
se lá no exterior, convencer anunciantes e produtores de que uma ideia é boa
para se investida já era complicado, imagina em Terra Brasilis desta época. Sendo assim, apenas
em 1959, foi produzido o episódio piloto, chamado “O Roubo do Diamante Gran
Mongol”, tendo sua estreia ocorrido pela extinta Tevê Tupi só em março de 1961
quando estavam já prontos cerca de 10 episódios.
Devido
as várias dificuldades técnicas da época, até para se duplicar um filme em
película, o seriado era exibido as quartas-feiras em São Paulo, e mal terminava
já viajava de carro para o Rio de Janeiro onde era exibido na quinta-feira.
Mas
isto não impediu que as aventuras do inspetor Carlos e Lobo causassem uma
verdadeira revolução em nosso país, chegando a ter índices de audiência que dependendo
da região do país variavam de 90% até 100%!
Ou
seja, Vigilante Rodoviário era uma final de Copa do Mundo toda semana!
Com
o sucesso e vislumbrando alcançar um público maior, já que ainda era bem baixo
o número de aparelhos de televisão em nosso país na época, a série chegou aos
cinemas em 1962 com o longa-metragem “O Vigilante Contra o Crime” e dois anos
depois com “O Vigilante em Missão Secreta”.
O inspetor Carlos e Lobo - Dupla inseparável |
Um
feito que só Arquivo X foi capaz de repetir nos anos 1990, já que o
longa-metragem do Batman derivado do seriado de 1966 pode até ter ido parar nos
cinemas, mas foi pensado originalmente como um telefilme.
Mostrando
que a aposta de Ary Fernandes estava mais que acertada ao criar seu personagem
pensando na simpatia que a Polícia Rodoviária possuía com as pessoas da época.
Mas
nenhuma escolha de Fernandes foi tão certeira quanto Lobo!
O
SRD (Sem Raça Definida), filho de um pastor alemão com uma SRD, não apenas
encantava a todos, como se tornou um caso único na história do audiovisual
mundial.
Lobo - A grande estrela do seriado |
Nascido
em 1955, Lobo tinha como tutor um soldado da extinta Guarda Pública, e quando
iniciou seus trabalhos na série até já era conhecido no meio publicitário por
alguns trabalhos, mas o que Ary Fernandes nem imaginava era que seu ator canino
se tratava de um indivíduo muito acima dos demais.
Pois
o que poucos sabiam era que Lobo já acompanhava seu tutor nas rondas diárias
pelo bairro, isto sem nenhum tipo de treinamento específico para tal, já
estando mais que acostumado com aquele tipo de ação, o que fazia com que as
filmagens dos episódios em geral ocorressem sem o menor tipo de contratempo.
Só
para se ter uma ligeira ideia, no clássico seriado “Rin Tin Tin”, eram usados
nada menos que dezoito cães diferentes para realizar cada ação que se via na
tela. Mas Lobo fazia tudo sozinho, sem ter passado por nenhum tipo de
adestramento específico.
Vou
até me permitir um momento de empolgação neste texto, e afirmar que Lobo é até
hoje o melhor representante da nossa miscigenação brazuca.
O
único incidente sério que ocorreu durante filmagens, foi quando Lobo
acidentalmente sofreu uma queimadura em sua cauda, ao encostá-la no cano de
descarga da moto Harley&Davison do inspetor Carlos, obrigando a produção a
trocar a moto pelo famoso Simca Chambord.
Carlos Miranda após se aposentar da Polícia Rodoviária |
A identificação de Carlos Miranda com o personagem que vivia foi tanta, que o ator ao fim do seriado acabou ingressando de fato na Polícia Rodoviária de São Paulo, onde atuou em vários cargos, mas que graças a fama e prestigio dado pelo seriado, se tornou porta-voz e relações públicas da corporação.
Vigilante
Rodoviário teve um total de três temporadas e 38 episódios, cujo o último foi
transmitido originalmente em maio de 1967. um sucesso tamanho que até nos quadrinhos foi parar.
Mas
Ary Fernandes queria mais, e em março de 1968 o público brasileiro era
apresentado ao esquadrão “Águias de Fogo”.
Com
uma abertura que para a época devia ser algo impressionante, mostrando os
poderosos caças ingleses Gloster Meteor que a FAB operava naqueles tempos, Águias
de Fogo apresentava as aventuras de um time de aviadores da nossa força aérea,
formado pelo Major Ricardo (Dirceu Conte), o sargento Fritz (Edson Pereira) que
apesar de nome era afrodescendente - ao que parece Ary Fernandes gostava de
provocar os nazis - especialista em comunicações, o Aspirante Fábio (Roberto
Bolant), piloto novato que costumava ser o “alívio cômico”, e Capitão César
(interpretado pelo próprio Ary Fernandes), em missões que na maioria das vezes tratavam
de resgates, mas que por vezes remetiam a filmes de espionagem.
Como
no episódio “O Invento” no qual um cientista que havia perdido seu filho
aviador na guerra (2ª Guerra para ser mais preciso, o seriado é de 1968),
desenvolve um novo tipo de combustível que mesmo em grandes quantidades não se
incendiava. E obvio que a invenção desperta o interesse de nações estrangeiras
e de espertalhões que pretendem fazer fortuna vendendo a fórmula.
O esquadrão Águias de Fogo |
Mesmo
com o apoio oficial, Águias de Fogo era um projeto caro, e sua produção foi
encerrada com apenas 26 episódios produzidos, mas não sem antes quase conseguir
um feito histórico.
Pois
hoje até podemos estar acostumados com crossovers
entre seriados diferentes, especialmente quando fazem parte de uma única
franquia como é o caso dos diversos CSI. Mas na época isto era algo que não
acontecia, tendo historicamente seu primeiro caso ocorrido na série do Batman
protagonizada por Adam West, no icônico episódio que promoveu o encontro entre
Batman e Robin com Besouro Verde e Kato.
Mas
aqui no Brasil, Ary Fernandes também brindou seu público com um destes
encontros. No episódio “Imprevisto”, uma menina chamada Ritinha, que morava
numa comunidade extremamente isolada no interior do Brasil (e não esqueça, é o
Brasil da década de 1960, aqui isolado é isolado mesmo!) passa mal de repente.
A mãe da menina a leva até a cidade mais próxima, mas o médico do local estava
em viagem, e somente a união de nossos heróis poderia salvá-la.
Sim!
O esquadrão Águias de Fogo une forças ao inspetor Carlos, o vigilante
rodoviário, e seu fiel amigo Lobo. E enquanto os aviadores vão buscar a menina,
os policiais (sim, usei plural, pois Lobo também entra na conta) vão buscar o
médico.
Os Águias de Fogo e o Inspetor Carlos unem forças no crossover "Imprevisto". |
Tais
seriados hoje, aos olhos dos mais jovens, mesmo os acostumados com os pueris
(em sua maioria) filmes de super-heróis feitos em frenéticas linhas de
montagem, podem parecer tolos, mas em sua época foram absolutamente
revolucionários, “colocando no bolso” diversas produções estadunidenses que a bem
da verdade até nem fazem mais sentido no mundo em que vivemos hoje.
Em
1978 como parte de um projeto da extinta (ufa!) Embrafilme, Ary Fernandes
tentou criar uma nova versão para Vigilante Rodoviário. Mas tem coisas que não
dá para fazer duas vezes, e seja por dificuldades da própria Embrafilme, ou o
fato de agora terem de utilizar nada menos que cinco cães dos quadros da
Polícia Militar paulista, já que Lobo faleceu em 1971, a coisa toda não passou
do episódio piloto.
Em
2009, Ary Fernandes selou um acordo com um canal por assinatura para a
recuperação dos originais de suas criações. Sendo que do “Vigilante Rodoviário”
35 dos 38 episódios originais conseguiram ser recuperados, e de “Águias de Fogo”
22 dos 26 originais foram salvos.
Com
passar dos anos, além de escritor, produtor, diretor, Fernandes “emprestou” seu
dom de ator para algumas dublagens lendárias.
Como o Rocko de “A Vida Moderna de Rocko”.
A primeira voz do detetive Bowman de Superman TAS.
E até foi Albion de Cefeu, o mestre de Hyoga de Cisne em
Cavaleiros do Zodíaco.
Então,
toda vez que se lembrar que os Estados Unidos tiveram Irwin Allen, ou o Japão
teve Eiji Tsuburaya, não se esqueça que nós aqui também tivemos nosso pioneiro,
que contra todas as expectativas, fez do sonho realidade, e que com a coragem
digna de seus personagens fez história encantando tantos por tanto tempo.
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