Em
1977 vindo da Marvel, após diferenças com Gerry Conway com o qual dividia a
roteirização de “Vingadores”, o escritor Steve Englehart aceitou o convite da
DC Comics, e assumindo a revista “Detective Comics”, marcou a história dos
quadrinhos com aquela que muitos definem como a fase que deu a “arte final” ao
Batman.
Um
período bem curto, formado por apenas oito edições, mas que foi fundamental
para evolução do “Morcego de Gotham”, e que ficou conhecido como “Estranhas
Aparições”!
Se
você que está lendo acompanha o “Enquanto Isso na Ponte de Comando”, já deve
ter esbarrado em algum artigo que escrevi envolvendo Batman, e alguma citação a
fase escrita por Steve Englehart, e que em sua maior parte foi ilustrada por
Marshall Rogers, e para a qual creio se faz necessária uma retificação
histórica.
Mas
por que tal retificação?
Bem,
para começar, é preciso se ter uma visão geral da indústria dos quadrinhos em
meados dos anos 70 e alguns de seus hábitos, para entendermos porque o que
Englehart fez foi tão diferente para a época, e porque foi base para muita
coisa que veio a acontecer apenas anos depois.
Naquela
época, o normal era que as HQ’s não compusessem o que aqui chamamos de arcos, e
os norte-americanos comumente chamam de run.
E ainda que coisas do tipo não fossem algo inédito - é só lembrarmos aqui da
saga Lanterna Verde e Arqueiro Verde de O’Neil e Adams para o qual já escrevi
um artigo - , o normal eram que as estórias se fechassem apenas em uma única
edição, sem nem mesmo um fio condutor.
Só
que o que Steve Englehart fez aqui foi algo até então impensado, pois ao ir
para a DC, o escritor havia dito a todos que aquela seria sua última incursão
por aquela mídia, e que depois se dedicaria apenas a escrever romances, na boa
e velha literatura tradicional.
E
ao contrário de qualquer outro autor até então, escreveu toda a saga de
“Estranhas Aparições” sozinho, sem contato com nenhum dos artistas que a
ilustraram, e tudo de uma vez só, isto antes até mesmo de entregar a primeira
edição para a DC Comics.
Uma
saga que não apenas manteve a reestruturação do personagem iniciada na fase de
Dennis O’Neil e Neal Adams , mas aprofundou as relações interpessoais de Bruce
Wayne/ Batman como nunca havia sido feito antes, com toques de filme de terror
(como aliás também nunca tinha sido feito), criando novos personagens, trazendo
para o “primeiro time de vilões” outros e que ainda teve espaço para homenagens
a “Era de Ouro” dos quadrinhos.
O
começo de tudo, mais especificamente as duas primeiras edições, desenhadas por
Walt Simonson, mostravam o “morcegão” as voltas com um vilão chamado Dr.Fósforo
, um personagem daqueles que podem parecer numa primeira olhada, absurdamente
inverossímil, e difícil de se encaixar num contexto digamos, mais pé no chão e
psicológico, mas é ele que acende (desculpe, não consegui evitar o chiste -
risos), o estopim para quase tudo que acontece depois.
E a
partir daí entramos numa das mais incríveis parcerias escritor/cartunista de
todos os tempos, quando Marshall Rogers assume a arte da saga.
Não
que Simonson fosse um artista ruim, mas a verdade é que Rogers, um discípulo de
Neal Adams, mesmo sem ter nunca estado até ali numa mesma sala com Englehart,
conseguiu captar de maneira perfeita oque o escritor queria passar, extrapolando
com tudo que já tinha sido imaginado para o “Morcego de Gotham” até aquele
momento
.
Imprimindo
um estilo que dava leveza às cenas de ação, opressão as cenas de terror, e que
como nenhum outro até então (até mesmo Neal Adams, sim pode acreditar), dava
uma especial atenção em como a cidade e todos os demais ambientes eram
apresentados, sendo muito desta última característica devido sua formação como
arquiteto.
Ser formado em arquitetura fazia Rogers ser quase um obececado pelos detalhes de Gotham |
E
se lembram do Dr.Fósforo? Pois é, graças a ele, Bruce Wayne vai parar numa
clínica para se recuperar dos ferimentos, e fazer o Batman desaparecer por uns
tempos, já que o chefe da máfia Rupert Thorne - um dos personagens criados por
Steven Englehart - vinha usando de sua influência política para disseminar a
ideia do Batman como um fora da lei.
E
aqui de uma tacada só, Englehart costura toda uma trama que mistura terror,
drama, intriga, e lógico, aquele bom heroísmo clássico. E com uma habilidade
pouco vista até os dias de hoje para misturar o imponderável com o real.
Não
é minha intenção aqui, ficar entrando nas minúcias da estória, até porque se
você não conhece “Estranhas Aparições”, não quero tirar algumas das surpresas
que nela estão.
Hugo Strange descobre que Bruce Wayne é o Batman... |
Mas
na tal clínica Bruce Wayne é drogado, e quando é tarde demais, descobre que o
médico que dirigia o estabelecimento era ninguém mais, ninguém menos, que o Dr.
Hugo Strange, um personagem que até ali estava “mortinho da silva”, até ser “ressuscitado”
por Englehart, ganhando a notoriedade que tem até hoje.
E
Strange tem a brilhante ideia de leiloar (sim, leiloar!), entre alguns dos
principais antagonistas do “morcego” sua verdadeira identidade, enquanto ele
próprio assume a identidade de Batman.
E neste contexto temos Silver St.Cloud!
Linda, inteligente e com um senso de humor afiadíssimo, a promotora de eventos, também criação de Englehart, era na
época a namorada de Bruce, e que muitos defendem até hoje ter sido o único
grande amor de Wayne nas HQ’s. Aqui vale ressaltar que naquela época esta
relação foi absolutamente diferente de tudo, pois ao contrário de Thalia Al
Ghul ou da Mulher-Gato que a bem da verdade nutriam um fetiche pelo Batman, aqui
temos o primeiro relacionamento maduro de Bruce Wayne.
Ela
então vai até a tal clínica saber do amado, numa tentativa que poderia ser
descrita como decepcionante. Só que desconfiada de que algo de muito errado
estava acontecendo, Silver resolve pedir ajuda. E liga para Dick Grayson, que
na época estava na faculdade. E num primeiro momento Dick aparenta não levar
muito a sério o que escuta... Num primeiro momento.
E eis
que então surge Robin!
Um Robin casca-grossa como nunca tinha sido visto |
Mas
como assim Robin?! Não estavam querendo trazer o Batman para um espectro mais
soturno e de acordo até mesmo com alguns pontos da ideia original do
personagem?! É o que talvez você que esteja lendo possa estar pensando, não é?
Pois
é, e aqui mais uma vez Steve Englehart mostra sua habilidade em caminhar numa fina
linha que mistura o atual ou moderno (que permanece atual e moderno até hoje),
com a linguagem mais clássica e simples do universo de heróis de quadrinhos.
Modernidade
captada por Marshall Rogers, que reestilizou Floyd Lawton, o Pistoleiro, transformando-o
quase que num caçador de recompensas de “Guerra nas Estrelas”. E que tem um
embate clássico com Batman, numa daquelas cenas que citei, nas quais se percebe
a fluidez e leveza que a perspectiva de Rogers dava.
A
saga ainda abre espaço para dois vilões clássicos, o Pinguim e o Coringa.
Quanto ao baixinho de cartola, ele se torna o antagonista da HQ em que a dupla
dinâmica atua junta após muito tempo, e sua participação não vai além disto,
mas quanto ao “Palhaço do Crime” temos um capítulo totalmente à parte.
Capítulo
totalmente à parte, pois reza a lenda urbana, Englehart não tinha a menor
intenção de incluir o “palhaço” em sua trama, e sua inserção teria sido imposta
pela DC Comics.
Sendo
assim, o que o escritor fez?
Simples,
criou uma das HQ’s mais loucas de todos os tempos, a famosa estória dos “Peixes
Risonhos”, na qual o Coringa contamina as águas de Gotham, fazendo os peixes
ficarem com uma fisionomia parecida com a dele. Tudo um plano para cobrar royalties de direitos autorais sobre sua
criação. Mas como o plano não dá certo, ele começa a assassinar os funcionários
do escritório de patentes.
Aliás,
uma representação que pessoalmente creio, Englehart tenha tido como inspiração
sua própria persona. Pois de
personalidade aguerrida e meio complicada, por várias vezes Englehart entrou em
rota de colisão com editores e executivos de estúdios, na maioria das vezes
cobrando direitos autorais sobre personagens seus que não nunca foram
devidamente repassados os lucros ao serem usados em outras obras.
O traço de Marshall Rogers... |
Uma
mistura inusitada de um Coringa com um plano que parecia ter saído da animação
do Batman derivada do seriado dos anos 60, mas que não deixou de mostrar o
personagem como psicopata que era, e com uma representação visual que o deixava
muito próximo ao ator que interpretou o “Homem Que Ri”, o personagem que foi
inspiração para o “Palhaço do Crime”, mais uma vez mostrando como Rogers
capitou com perfeição o que Englehart pensava.
...aproximou de vez o Coringa de sua inspiração primária. |
E
como “cereja do bolo” ainda somos brindados como a terceira versão do Cara de
Barro, numa estória na qual Englehart se preocupa em contar toda a trajetória
que fez o vilão chegar aquela condição, o que, aliás, já havia feito também com o
Pistoleiro. E com aquela faceta de filme de terror que citei alguns parágrafos
acima. Sendo que já no final desta run,
o roteiro de Englehart teve a colaboração (ainda que a contragosto do escritor)
de Lein Wein.
A imaginação da dupla Englehart/Rogers cria a mais amedrontaroa versão do Cara de Barro |
Lógico
que como nós sabemos, com o reconhecimento de “Estranhas Aparições”, Steve
Englehart não abandonou os quadrinhos, e para nossa sorte alguns anos depois
foi escrever Lanterna Verde, título para o qual criou um dos personagens mais
carismáticos de todos os tempos, Killowog. E que ainda de quebra foi
responsável pela reimaginação de Guy Gardner.
Killowog - Mais uma criação de Steve Englehart |
Segundos
relatos dele, desde o fim dos anos 1970 que a DC tinha planos para uma versão live action de Batman, movidos pelo
sucesso do Superman de Richard Donner, e que ele mesmo teria apresentado três roteiros
diferentes para o projeto, que dez anos depois acabou parando nas tresloucadas
mãos do diretor Tim Burton, que descartou praticamente tudo que o escritor
tinha pensado, só sobrando a inspiração de Silver St.Cloud para Vicky Vale
(ainda que pessoalmente considere a personagem vivida por Kim Bassinger uma
completa idiota, nem de longe se assemelhando a Silver), alguns traços do
Coringa de Jack Nicholson, e obviamente inspiração do envenenamento que deixa
as vítimas do Coringa com sua fisionomia.
Rupert Thorne em Batman TAS |
Além
disto, dá para se dizer que a obra de Englehart tem um fã
ilustre em Bruce W. Timm, que em "Batman The Animated Series", não apenas “adotou” Rupert Thorne
como seu mafioso de cabeceira, como adaptou duas estórias de “Estranhas
Aparições”: Os Peixes Risonhos e Eu Sou O Batman (que ganhou o título de “O
Estranho Segredo de Bruce Wayne).
Em
2006, enfim de fato trabalhando juntos, Steve Englehart e Marshall Rogers
retornam a Batman e seu universo, era The Dark Detective. Porém, a obra, que
teve alguns de seus elementos adaptados para o filme “Batman O Cavaleiro das
Trevas”, ficou inacabada após a morte de Rogers em 2007.
Dark Detective marcou a volta da parceria Englehart/Rogers... |
...mas a obra ficou "inacabada". |
Lembrada,
ovacionada e reverenciada em outros países, como uma das sagas que de fato
definiram o assim chamado “Batman moderno”, segue aqui em Terra Brasilis pouco conhecida, por uma geração que nem faz ideia
que muito daquilo que dizem gostar já tinha sido feito bem antes de outros
autores que se valeram de tudo que já tinha sido construído e de um momento
favorável para se autopromover, mas que até hoje bebem da fonte desbravada por
Steve Englehart em Estranhas Aparições.
Uma das vezes que "Estranhas Aparições" foi publicada no Brasil, na revista "Superamigos" |
Minha maior lembrança do Englehart é do seu trabalho com o capitão América
ResponderExcluirA Panini republicou essa fase em Lendas do Cavaleiro das Trevas Marshall Rogers
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