sábado, 20 de julho de 2024

Godzilla Minus One

 

Ao longo dos últimos setenta anos, várias e várias foram as versões para o clássico kaiju criado em 1954 no clássico filme dirigido por Inishiro Honda, e que teve os efeitos visuais a cargo do mestre Eiji Tsuburaya.

De filmes nipônicos de qualidade as vezes bastante duvidosa, ainda que bem divertidos, até as versões estadunidenses que foram da clássica série de animação da Hanna-Barbera, passando pela absurda e bizarra representação de 1998, até a sua versão mais atual no chamado monsterverse da produtora Legendary, Godzilla se sedimentou como talvez o maior pilar da cultura pop nipônica.

Mas eis que em 2023, em meio a balbúrdia gerada por mais um encontro de Godzilla com King Kong em sua versão estadunidense, eis que lá de sua terra natal mais um filme sobre o kaiju, filho bastardo da era atômica, e anti-herói muito antes deste conceito se difundir foi anunciado.

Era Godziila Minus One!

Admito que ao ver seu primeiro trailer fiquei bastante impressionado com as imagens, e até mesmo empolgado (coisa rara para este escriba hoje em dia), ainda que soubesse que a tarefa de recontar a estória original do filme de 1954 não pudesse ser limitada a meros efeitos visuais bem feitos.

Só que antes de entrar em seu espetacular roteiro, repleto de nuances, subtramas e citações históricas que com certeza a maioria do público não deve ter conseguido perceber, preciso falar um pouco da parte técnica, coisa que em geral deixo para uma segunda parte de resenhas como esta.

O diretor Takashi Yamazaki

A empreitada de Godzilla Minus One foi dada ao talvez mais badalado diretor japonês da atualidade, Takashi Yamazaki. Que ainda que não fosse famoso mundialmente, tinha em seu currículo títulos como o live action da “Patrulha Estelar” de 2010, “Zero Eterno”, e “A Guerra de Archimedes” que conta sobre justamente o projeto de construção dos encouraçados da classe Yamato.

Outros filmes dirigidos por Yamazaki antes de Godzilla Minus One

Yamazaki, que começou sua saga no cinema como técnico de efeitos visuais, cunhou sua fama por entregar filmes tecnicamente impecáveis, com orçamentos que mal pagariam o serviço de catering de uma super produção estadunidense atual, o que em “Godzilla Minus One” não foi diferente.

Ou será que foi?

Sim Foi!

Lógico que você está lendo deve saber do Oscar de efeitos visuais que Godzilla Minus One levou para casa, que pode ser de certa forma uma indireta bem direta para os absurdos gastos em produções hollywoodianas que entregam resultados pouco satisfatórios pelo tanto de propaganda que fazem.

Mas aqui temos bem mais do que convincentes efeitos visuais. Temos tudo aquilo que Hollywood quase nunca conseguiu equacionar em suas produções sobre monstros gigantes, somado ao fato de que este filme é um dos melhores dramas pós-guerra que este humilde escriba já teve o prazer de assistir.

A saga de Godzilla Minus One começa em 1944, quando um jovem piloto chamado Koichi Shikishima (Ryunosuke Kamiki), que tinha sido designado como piloto kamikaze, resolve não cumprir sua missão suicida, e simula um defeito em seu avião, pousando numa ilha que servia de ponto de manutenção de aviões.

E sua farsa ainda que não passando despercebida por Tachibana (Munetaka Aoki), chefe dos mecânicos do lugar, parece ter funcionado, já que o militar, imaginando o fim eminente do conflito e o que estava por vir ao seu país, esconde o segredo do piloto, ao mesmo tempo que se mostra cético e questionador sobre determinados dogmas que precisavam seguir.

Só que a única coisa que o senhor Tachibana não podia imaginar é que naquela noite, em meio aos sons distantes da guerra, a ilha receberia a visita furiosa do dinossauro que mais tarde se tornaria Godzilla.

Que logicamente acaba provocando a reação dos militares, e a não reação de Shikishima, que mesmo sob apelos de Tachibana para que usasse as armas de seu avião contra a criatura, hesita.

Aqui é preciso abrir um pequeno parêntese para salientar a sagacidade do roteiro, que ao mesmo tempo que sacia a vontade do espectador de ver logo um monstrão esmagando e destruindo o que está pela frente, algo que faltou por exemplo no filme estadunidense de 2014, estabelece também o que viria a ser a premissa central sobre seu protagonista humano, que passa a conviver com uma brutal sensação culpa.

Deixando claro para o espectador que a despeito do monstro, da destruição e da pirotecnia, a questão humana e seus dramas estariam no centro da trama.

Característica esta que se escancara de vez quando Shikishima retorna para casa já em 1945. Uma Tóquio devastada, que mais parecia um imenso lixão a céu aberto, no qual as pessoas tentavam sobreviver do resto dos restos.

Mas como desgraça pouca é bobagem, além de nosso protagonista descobrir através de uma vizinha, Sumiko (Sakura Ando), que os pais haviam morrido, ainda é confrontado pela mesma, que tomada por um misto de perplexidade e frustração o questiona do por que não ter cumprido sua missão, ou seja, se matar, para defende-los do inimigo, aumentando os fantasmas de culpa que lhe atormentavam.

Aqui preciso muito abrir mais um parêntese nesta resenha (acho que serão vários), pois por mais de uma vez durante o filme há referências apenas em diálogos, e de forma implícita, a um dos mais terríveis capítulos da Segunda Guerra Mundial, o bombardeio à Tóquio.

O bombardeio a Tóquio foi a primeira vez na história em que foram usadas bombas de napalm (espécie de gelatina de gasolina) com espoletas barométricas. Algo que aumentava em muito o poder de destruição dos artefatos, criando praticamente uma versão real do apocalipse da Bíblia, na qual literalmente chovia fogo do céu. Detalhe este que passou batido pelo público em geral e por todos os resenhistas da web, mesmo aqueles que abordaram o filme pelo viés militar.

Mas calma, que a bagunça na vida de nosso amigo Koichi Shikishima só tinha começado, já que logo depois ele acaba recebendo uma bebê das mãos de uma moça chamada Noriko (Minami Hanabe, o grande destaque do elenco) que fugia de um grupo de pessoas, que aparentemente queriam linchá-la por acharem ser uma prostituta, já que trajava um quimono típico das gueixas que prestavam este de serviço.

Bebê que Shikishima depois descobre que nem era da jovem e que ela passou a cuidar após o pedido da mãe verdadeira que nunca tinha visto antes (atenção para mais uma citação ao bombardeio a Tóquio aqui).

E assim estes três seres sem expectativas formam uma família totalmente fora de qualquer padrão da sociedade da época, munidos apenas de vontade, se apoiando mutuamente e sendo assombrados pelos fantasmas de Koichi, que o impediam de seguir em frente com partes importantes da vida, como assumir a relação com Noriko.

Provavelmente você que está lendo, deve já estar se perguntando agora: Cadê o Godzilla?

Pois bem, neste meio tempo acorrem os testes atômicos no pacífico que transformariam aquele dinossauro que surgiu na ilha no Godzilla que conhecemos.

E aqui preciso dizer que talvez resida o único ponto de todo filme que eu mudaria, já que a transformação, a mutação do lagartão, foi sobretudo um processo muito dolorido, que ainda que não deixe de ser mostrado, é feito de forma tão breve que com certeza acaba não sendo captado da forma correta por boa parte do público, que não se dá conta do que de fato nosso querido Zilla acaba se tornando ainda que de forma metafórica, ou seja, um instrumento de vingança da natureza diante da arrogância humana.

Enquanto isso nosso amigo Koichi Shikishima depois de muito batalhar consegue um emprego que pagava muito bem, integrando a tripulação de um barco que tinha como missão limpar as águas do Japão das milhares de minas que nelas foram depositadas. Tanto pelos japoneses na intenção de barrar o avanço estadunidense, como pelos norte-americanos que durante a guerra pretendiam impedir a chegada de suprimentos ao arquipélago nipônico.

Só que estas minas após serem descobertas eram desativadas na base da bala mesmo, e é aí que a coisa toda começa a desandar de vez, pois aquele explode mina daqui, explode mina dali, acaba por mais uma vez despertar a fúria do agora atômico Godzilla, que estava até então quieto no seu canto. Portanto, ao contrário de algumas resenhas que permeiam a web, há sim razão para o ataque do lagartão, que é bem provocado e enfurecido pela ação humana.

O que aliás me faz lembrar as palavras de um professor de ciências que disse: A natureza não se defende, a natureza se vinga.

E esta sequência dentro do barco, não tem jeito, é clara sua inspiração em “Tubarão”, e não há como não vir na mente de qualquer fã de cinema a clássica frase de Roy Scheider: Vai precisar de um barco maior.

Mas nada que supere o terror e espetáculo do que é a chegada de Godzilla à Tóquio.

Talvez o ponto que mais incomoda este humilde escriba nos filmes do chamado “Monsterverse” da Legendary, é com certeza a destruição inconsequente de cidades inteiras como se aquilo fossem bloquinhos de montar de um brinquedo infantil.

Mas aqui a coisa é muito diferente.

Seja porque tivemos todo um roteiro que soube explorar cada nuance de seus protagonistas, até mesmo com breves pitadas de humor nos momentos certos, ou porque tudo que é mostrado do Japão destruído no pós-guerra nos fazem sentir o desespero das pessoas diante de algo que não tinham como controlar.

Numa sequência absurdamente perfeita, que já sai do lugar comum ao se passar durante o dia, coisa que a maioria dos filmes do gênero foge, seja por uma escolha da direção ou porque fica mais fácil mascarar qualquer imperfeição num cenário mais escuro.

E que culmina não com um close no personagem título, mas sim em Shikishima, num grito de raiva, impotência e desespero, logo após Godzilla terminar seu festim de terror com sua baforada atômica, numa conclusão que remete diretamente ao que ocorreu logo após os bombardeios à Hiroshima e Nagasaki.

Tive o desprazer imenso em travar contato com algumas resenhas que torciam o nariz para a representação de Godzilla deste filme, alegando efeitos visuais pobres, talvez provocados pela falta de verba, dizendo por exemplo que o lagartão não tinha movimentos desenvoltos e pouca expressão no rosto.

Nem imaginavam na época que o filme ganharia o Oscar nesta categoria (risos).

Yamazaki e Christopher Nolan com seus Oscars

O que me leva a crer o quanto a atenção destes ditos “entendedores”, e capacidade de raciocínio, foram empanadas pelos artífices da indústria, enquanto só objetivam sua busca desenfreada por “curtidas” e “seguidores”.

Pois vamos pensar aqui. Estamos falando de um réptil com o peso aproximado de vinte mil toneladas (este peso é citado durante o filme). E seria ridículo dentro do contexto deste filme um ser destes, com a expressividade de uma Meryl Streep e a desenvoltura de um Jean-Claude Van Damme em começo de carreira.

Portanto mais um ponto para Takashi Yamazaki, que fez a escolha certa, para seu filme, que ruma para seu ato final, quando um grupo de veteranos de guerra e indivíduos da população civil se une num plano para lá de louco para matar Godzilla, que tem como ponta desta lança justamente Shikishima, que parte enfim para enfrentar seus fantasmas e medos, a bordo de um caça Kyushu J7.

Um verdadeiro Kyushu J-7 em foto da época

Caça que de fato existiu ainda que não tenha passado do estágio de protótipo, e que ao contrário do que muitos que já assistiram o filme possam ter pensado tem sim algumas características inovadoras para época que os japoneses conseguiram trazer da Alemanha, mas que não vou contar aqui para não estragar a experiência, caso você que está lendo não tenha ainda visto o filme.

Até poderia colocar aqui uma ressalva sobre este filme maravilhoso no que concerne a parte da mea culpa nipônica em seus atos durante a Segunda Guerra, que se limitou apenas de forma tímida em criticar como os militares de patente mais baixa foram usados como “bucha”, mas seria algo forçado para um filme que possui sim contornos de obra-prima, e que fez até Steven Spielberg se render a sua trama e talento de seus realizadores.

Até Spielberg se rendeu à Godzilla Minus One

Esta é uma resenha que demorei a fazer, e que sei, ficou bem longa.

Mas que agora ao redigir suas últimas linhas o faço com alma lavada e espírito renovado, na certeza que assisti ao melhor filme de monstro já feito na história e que a despeito de seu fio condutor inverossímil, é sim também, um dos melhores dramas de guerra ou pós-guerra que já foram feitos.

Tornando Godzilla Minus One um absoluto ponto fora da curva para o cinema atual, que precisa e muito entender, que uma base ainda que simples, mas com emoções e motivações bem trabalhadas, num roteiro verdadeiramente inteligente, é o que sempre farão a diferença, deixando sua marca nas retinas, mentes e corações do público.



 

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