Apesar
da espetacular semente plantada pelo Superman de Richard Donner em 1978, os
filmes de heróis de quadrinhos, pelas mais diferentes razões, até começo dos
anos 2000, pouca relevância possuíam em meio à indústria cinematográfica.
Não
que deixassem de acontecer, mas em geral tais produções eram de orçamentos
pouco ou nada adequados aos planos que qualquer realizador gostaria de ter, e
em geral eram destinados a personagens de segundo escalão, vide os casos de
Supergirl, Justiceiro, o juiz Dredd e até de Blade, que logicamente geravam
menos riscos aos estúdios caso a película acabasse em fracasso.
E
mesmo quando o personagem retratado era do chamado “primeiro time”, o desdém
dos produtores pela mitologia e preservação do cerne era tão grande que
permitiam dicotomias insanas como o teatro gótico/infantil dos filmes do Batman
de Tim Burton.
Porém,
em 2002, sob o comando do diretor Sam Raimi, um novo capítulo começava a ser
escrito, e chegava aos cinemas “Homem Aranha”.
Tudo
bem, eu sei que dois anos antes havia acontecido o filme dos XMen, que pode ser
considerado uma espécie de “ponta-pé-inicial” desta nova era, e até o já citado
filme de Blade e sua trilogia, contribuíram para chegar neste citado momento.
Mas em ambos os casos, seja porque não tinham, ou porque o roteiro apressado
não explorou, não se consegue enxergar aquele viés de humanização que faz mesmo
o público que não é de quadrinhos se importarem com o personagem.
E
que personagem seria melhor para fazer isto que a mais perfeita encarnação do
perdedor, o “Charlie Brown” dos super-heróis, o “Amigão da Vizinhança”, o
Homem-Aranha?!
Sim,
perdedor. E digo isto, sem um pingo de remorso e até uma ponta de satisfação,
pois no fim das contas, a despeito da visão míope de parte da audiência destes
filmes, o herói em síntese é um grande perdedor, aquele que destrói a vida
pessoal para defender aquilo que acredita, mesmo que durante sua jornada se
questione da validade de tudo aquilo.
Mas
como o Homem-Aranha de Sam Raimi se tornou algo tão relevante?
Bem
simples, seguindo a cartilha escrita por Richard Donner lá em 1978. Duvida?
Tudo bem, então, vamos lá.
Assim
como na obra de Donner, aqui o roteiro não tem a menor pressa em mostrar o
personagem título na sua forma e visual heroicos, se preocupando antes de tudo
em contar a história de Peter Parker, seus problemas (e bota problemas nisto),
e lógico, sua paixão não correspondida pela vizinha Mary Jane. Pois antes de
fazer o público se importar com o cara mascarado e de colam colorido, o mais
importante era fazer as pessoas se importarem com quem de fato poderiam se
identificar, seja na timidez, nos problemas do cotidiano e até para pagar as
contas.
E
também a escolha do amor de Peter por Mary Jane como fio condutor da trama, que
assim como no Superman de Donner, e o amor de Clark por Lois, não é
correspondido. Algo que, aliás, a própria narração de Peter no começo do filme
já deixa mais que claro.
A homenagem explícita de Sam Raimi... |
E
se você que está lendo ainda duvida do respeito pela obra de Richard Donner,
lembro aqui da cena em que Peter corre por um beco, e abre a camisa mostrando o
uniforme de herói por baixo da roupa, numa referência e reverência explícita ao
Superman de 1978.
... ao Superman de Richard Donner |
Tendo
esta base pronta Sam Raimi partiu para a produção propriamente dita, e aqui
estão alguns erros, alguns acertos, e alguns erros que deram certo. Como assim?
No
plano original era para que Peter usasse os conhecidos lançadores de teia
criados por ele mesmo. Contudo, não sei de quem ali foi a ideia, optaram por
teias orgânicas, geradas pelo próprio corpo do herói. Não vou entrar aqui em
minúcias biológicas, pois não é o foco deste blog, mas aqui se iniciou aquele
que é o maior “calcanhar de Aquiles” desta trilogia cheia de méritos, que foi
não explorar a inteligência de Parker, um dos personagens, senão o personagem,
mais inteligente da Marvel.
Contudo,
nem todas as mudanças nas ideias primárias para a película foram assim tão
desastrosas.
Um
amigo meu, costuma dizer que bons diretores de filmes de terror, dão bons
diretores de filmes de super-heróis. E esta máxima parece se confirmar mais uma
vez aqui, já que Raimi se notabilizou pelos filmes da franquia “Uma Noite
Alucinante” (Evil Dead no original), e como não poderia deixar de ser, tentou
imprimir tal marca ao filme, projetando com sua equipe uma máscara para o
Duende Verde.
A primeira versão do Duende Verde |
Entretanto
tal caracterização acabou sendo considerada assustadora demais para um filme
que se pretendia conversar com um público bem jovem, e a ideia de Sam Raimi foi
descartada. Sendo substituída pela armadura que conhecemos e sua
máscara/capacete.
E
qual seria a importância disto?
Um
precedente importante foi aberto aqui, pois a despeito das deploráveis opiniões
dos puristas fãs de quadrinhos que se consideram os “deuses da razão” e adoram
soltar bravatas vazias em grupos de redes sociais, com a aceitação desta versão
mais “verossímil” do vilão (eu sei que deveria colocar mais aspas aqui, mas não
dá – risos), e bem de acordo com oque o roteiro nos mostra, ficou provado que a
caracterização de um personagem de quadrinhos ao ser transposto para o cinema live action, uma mídia tão diferente de
sua original, não precisaria ser tão desesperadamente idêntica.
Sam Raimi orientando seus atores durante as filmagens |
Algo
que a produção de “XMen - O Filme” poderia ter pensado dois anos antes, nos
poupando de exageros visuais como o do Dente de Sabre.
E
que aqui numa consideração absolutamente pessoal afirmo, foi determinante para
algumas escolhas visuais que Christopher Nolan tomou em sua trilogia do Batman,
assim como a mudança na origem de alguns personagens.
E
se você que está lendo neste momento, possa estar ensaiando uma leve risada,
preciso lembrar da homenagem que Nolan presta a trilogia de Raimi, colocando um
cartaz de Homem-Aranha 3 em “Cavaleiro das Trevas”.
A referência a Homem Aranha 3 em Batman O Cavaleiro das Trevas |
Mais
um ponto em que o Aranha de Raimi seguiu passo a passo a cartilha do Superman
de Donner foi a escolha de seu elenco.
Começando
por escolher o desconhecido Tobey Maguire para viver o protagonista-título e
seu alterego, fora o restante do que seria o núcleo jovem que tinha quase
estreante James Franco como Harry Osborn.
E cujo rosto mais conhecido era de
Kristen Dunst, a eterna crush do
herói, que era lembrada por sua participação ainda criança em “Entrevista com o
Vampiro”.
Mas
como aqui estamos falando de um trabalho de fato autoral, lógico que Sam Raimi não abriria mão de
colocar os amigos no filme, uma característica marcante do diretor.
Ted Raimi |
E
obviamente lá estava Ted Raimi, seu o irmão mais novo, e eterno Joxer de “Xena
A Princesa Guerreira”, como Hoffman, assessor de J.J. Jameson.
Lucy Lawless |
E por falar na
princesa guerreira, como Sam Raimi foi um dos produtores do seriado, temos Lucy
Lawless fazendo uma ponta como uma punk.
Bruce Campbell |
E como
era de se esperar temos Bruce Campbell, o Ash de “Evil Dead” como o apresentador
do torneio de luta livre no qual Peter se envolve. Campbell que, aliás, aparece
nos dois filmes posteriores também, como gerente do teatro onde Mary Jane se
apresentava, e no terceiro como maitre
do restaurante no qual Peter vai jantar com sua amada.
Há
uma teoria maluca que circula na web de que Campbell possivelmente viria a ser
o vilão Mysterio no quarto filme da franquia, isto devido uma entrevista que o
ator deu em 2009.
Dylan Baker era o professor Connors |
Mas
pessoalmente é algo que este escriba aqui nunca levou em consideração, pois
sempre considerei bem mais plausível que se o quarto filme viesse a ganhar a
luz do dia este vilão seria o Lagarto, já que o professor Connors (Dylan Baker)
que nós sabemos se transforma no vilão, está lá presente na trilogia, fora que
o personagem acabou se tornando o antagonista do reboot protagonizado por Andrew Garfield.
Ainda
seguindo a “cartilha de Donner”, Raimi se calçou de
experientes atores para papéis chave, como Williem Dafoe para ser Norman Osborn/Duende
Verde.
E J.K Simons para J.Jonah Jameson numa representação absolutamente
impagável do editor-chefe do jornal “Clarim Diário”. Tão perfeita que quase vinte
anos depois fez Simons retornar (ainda que de forma breve) ao papel em “Homem
Aranha Longe de Casa”.
Mas
aqui eu preciso salientar a magnífica atuação de Rosemary Harris! A veterana
atriz inglesa que deu vida com incrível sutileza a tia May, e que por mais de
uma vez rouba a cena para si, em especial quando sua personagem demonstra que
de fato era capaz de qualquer sacrifício pelo sobrinho.
Em
situações de relações interpessoais que só mesmo nosso querido “cabeça de teia”,
e talvez os XMen, consigam replicar na Marvel, numa característica que em geral
a concorrente DC Comics sempre foi mais feliz em explorar, ou seja, seus
núcleos de “pessoas normais” e a base que geram para os protagonistas de suas
HQs.
Coisa
que fã padrão de quadrinhos em geral se irrita, pois tudo que quer é a
exacerbação unilateral daquela característica que para ele define isoladamente o
personagem, e da mesma forma que o Batman sofre na DC sendo visto apenas como
um mero espancador de criminosos sombrio, aqui o “Amigão da Vizinhança” pena
por causa de seu bom humor.
Como
se a despeito de toda sua trajetória sofrida, o personagem tivesse que agir
como uma stand up comedy ambulante,
ou ainda pior, que sua personalidade livre, que só a máscara do Aranha consegue
lhe dar, tivesse que ser característica presente em tempo integral.
Mas
ao que parece Sam Raimi seguiu o conselho do Tio Ben, de que com grandes
poderes vêm grandes responsabilidades, e manteve seu rumo, referenciando sem
pudores outras obras de quadrinhos e até brincando (tirando sarro para ser mais
específico) do que parte dos fãs bradava ser o correto.
Mas
isto vou deixar para segunda parte desta incrível trilogia, seu segundo e
marcante filme com uma das melhores cenas de filmes de super-heróis de todos os
tempos, e seu tão mal falado terceiro capítulo, mas que ainda sim, possui
algumas sacadas geniais.
Então...
Até lá!
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