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terça-feira, 16 de junho de 2020

Homem Aranha - A Trilogia (parte 1)


Apesar da espetacular semente plantada pelo Superman de Richard Donner em 1978, os filmes de heróis de quadrinhos, pelas mais diferentes razões, até começo dos anos 2000, pouca relevância possuíam em meio à indústria cinematográfica.
Não que deixassem de acontecer, mas em geral tais produções eram de orçamentos pouco ou nada adequados aos planos que qualquer realizador gostaria de ter, e em geral eram destinados a personagens de segundo escalão, vide os casos de Supergirl, Justiceiro, o juiz Dredd e até de Blade, que logicamente geravam menos riscos aos estúdios caso a película acabasse em fracasso.
E mesmo quando o personagem retratado era do chamado “primeiro time”, o desdém dos produtores pela mitologia e preservação do cerne era tão grande que permitiam dicotomias insanas como o teatro gótico/infantil dos filmes do Batman de Tim Burton.


Porém, em 2002, sob o comando do diretor Sam Raimi, um novo capítulo começava a ser escrito, e chegava aos cinemas “Homem Aranha”.
Tudo bem, eu sei que dois anos antes havia acontecido o filme dos XMen, que pode ser considerado uma espécie de “ponta-pé-inicial” desta nova era, e até o já citado filme de Blade e sua trilogia, contribuíram para chegar neste citado momento. Mas em ambos os casos, seja porque não tinham, ou porque o roteiro apressado não explorou, não se consegue enxergar aquele viés de humanização que faz mesmo o público que não é de quadrinhos se importarem com o personagem.
E que personagem seria melhor para fazer isto que a mais perfeita encarnação do perdedor, o “Charlie Brown” dos super-heróis, o “Amigão da Vizinhança”, o Homem-Aranha?!


Sim, perdedor. E digo isto, sem um pingo de remorso e até uma ponta de satisfação, pois no fim das contas, a despeito da visão míope de parte da audiência destes filmes, o herói em síntese é um grande perdedor, aquele que destrói a vida pessoal para defender aquilo que acredita, mesmo que durante sua jornada se questione da validade de tudo aquilo.


Mas como o Homem-Aranha de Sam Raimi se tornou algo tão relevante?
Bem simples, seguindo a cartilha escrita por Richard Donner lá em 1978. Duvida? Tudo bem, então, vamos lá.
Assim como na obra de Donner, aqui o roteiro não tem a menor pressa em mostrar o personagem título na sua forma e visual heroicos, se preocupando antes de tudo em contar a história de Peter Parker, seus problemas (e bota problemas nisto), e lógico, sua paixão não correspondida pela vizinha Mary Jane. Pois antes de fazer o público se importar com o cara mascarado e de colam colorido, o mais importante era fazer as pessoas se importarem com quem de fato poderiam se identificar, seja na timidez, nos problemas do cotidiano e até para pagar as contas.
E também a escolha do amor de Peter por Mary Jane como fio condutor da trama, que assim como no Superman de Donner, e o amor de Clark por Lois, não é correspondido. Algo que, aliás, a própria narração de Peter no começo do filme já deixa mais que claro.

A homenagem explícita de Sam Raimi...

E se você que está lendo ainda duvida do respeito pela obra de Richard Donner, lembro aqui da cena em que Peter corre por um beco, e abre a camisa mostrando o uniforme de herói por baixo da roupa, numa referência e reverência explícita ao Superman de 1978.

... ao Superman de Richard Donner



Tendo esta base pronta Sam Raimi partiu para a produção propriamente dita, e aqui estão alguns erros, alguns acertos, e alguns erros que deram certo. Como assim?
No plano original era para que Peter usasse os conhecidos lançadores de teia criados por ele mesmo. Contudo, não sei de quem ali foi a ideia, optaram por teias orgânicas, geradas pelo próprio corpo do herói. Não vou entrar aqui em minúcias biológicas, pois não é o foco deste blog, mas aqui se iniciou aquele que é o maior “calcanhar de Aquiles” desta trilogia cheia de méritos, que foi não explorar a inteligência de Parker, um dos personagens, senão o personagem, mais inteligente da Marvel.
Contudo, nem todas as mudanças nas ideias primárias para a película foram assim tão desastrosas.
Um amigo meu, costuma dizer que bons diretores de filmes de terror, dão bons diretores de filmes de super-heróis. E esta máxima parece se confirmar mais uma vez aqui, já que Raimi se notabilizou pelos filmes da franquia “Uma Noite Alucinante” (Evil Dead no original), e como não poderia deixar de ser, tentou imprimir tal marca ao filme, projetando com sua equipe uma máscara para o Duende Verde.

A primeira versão do Duende Verde

Entretanto tal caracterização acabou sendo considerada assustadora demais para um filme que se pretendia conversar com um público bem jovem, e a ideia de Sam Raimi foi descartada. Sendo substituída pela armadura que conhecemos e sua máscara/capacete.


E qual seria a importância disto?
Um precedente importante foi aberto aqui, pois a despeito das deploráveis opiniões dos puristas fãs de quadrinhos que se consideram os “deuses da razão” e adoram soltar bravatas vazias em grupos de redes sociais, com a aceitação desta versão mais “verossímil” do vilão (eu sei que deveria colocar mais aspas aqui, mas não dá – risos), e bem de acordo com oque o roteiro nos mostra, ficou provado que a caracterização de um personagem de quadrinhos ao ser transposto para o cinema live action, uma mídia tão diferente de sua original, não precisaria ser tão desesperadamente idêntica.

Sam Raimi orientando seus atores durante as filmagens

Algo que a produção de “XMen - O Filme” poderia ter pensado dois anos antes, nos poupando de exageros visuais como o do Dente de Sabre.
E que aqui numa consideração absolutamente pessoal afirmo, foi determinante para algumas escolhas visuais que Christopher Nolan tomou em sua trilogia do Batman, assim como a mudança na origem de alguns personagens.
E se você que está lendo neste momento, possa estar ensaiando uma leve risada, preciso lembrar da homenagem que Nolan presta a trilogia de Raimi, colocando um cartaz de Homem-Aranha 3 em “Cavaleiro das Trevas”.

A referência a Homem Aranha 3 em Batman O Cavaleiro das Trevas

Mais um ponto em que o Aranha de Raimi seguiu passo a passo a cartilha do Superman de Donner foi a escolha de seu elenco.


Começando por escolher o desconhecido Tobey Maguire para viver o protagonista-título e seu alterego, fora o restante do que seria o núcleo jovem que tinha quase estreante James Franco como Harry Osborn.


E cujo rosto mais conhecido era de Kristen Dunst, a eterna crush do herói, que era lembrada por sua participação ainda criança em “Entrevista com o Vampiro”.


Mas como aqui estamos falando de um trabalho de fato autoral,  lógico que Sam Raimi não abriria mão de colocar os amigos no filme, uma característica marcante do diretor.

Ted Raimi

E obviamente lá estava Ted Raimi, seu o irmão mais novo, e eterno Joxer de “Xena A Princesa Guerreira”, como Hoffman, assessor de J.J. Jameson.

Lucy Lawless

E por falar na princesa guerreira, como Sam Raimi foi um dos produtores do seriado, temos Lucy Lawless fazendo uma ponta como uma punk.



Bruce Campbell

E como era de se esperar temos Bruce Campbell, o Ash de “Evil Dead” como o apresentador do torneio de luta livre no qual Peter se envolve. Campbell que, aliás, aparece nos dois filmes posteriores também, como gerente do teatro onde Mary Jane se apresentava, e no terceiro como maitre do restaurante no qual Peter vai jantar com sua amada.
Há uma teoria maluca que circula na web de que Campbell possivelmente viria a ser o vilão Mysterio no quarto filme da franquia, isto devido uma entrevista que o ator deu em 2009.

Dylan Baker era o professor Connors

Mas pessoalmente é algo que este escriba aqui nunca levou em consideração, pois sempre considerei bem mais plausível que se o quarto filme viesse a ganhar a luz do dia este vilão seria o Lagarto, já que o professor Connors (Dylan Baker) que nós sabemos se transforma no vilão, está lá presente na trilogia, fora que o personagem acabou se tornando o antagonista do reboot protagonizado por Andrew Garfield.


Ainda seguindo a “cartilha de Donner”, Raimi se calçou de experientes atores para papéis chave, como Williem Dafoe para ser Norman Osborn/Duende Verde.


E J.K Simons para J.Jonah Jameson numa representação absolutamente impagável do editor-chefe do jornal “Clarim Diário”. Tão perfeita que quase vinte anos depois fez Simons retornar (ainda que de forma breve) ao papel em “Homem Aranha Longe de Casa”.


Mas aqui eu preciso salientar a magnífica atuação de Rosemary Harris! A veterana atriz inglesa que deu vida com incrível sutileza a tia May, e que por mais de uma vez rouba a cena para si, em especial quando sua personagem demonstra que de fato era capaz de qualquer sacrifício pelo sobrinho.


Em situações de relações interpessoais que só mesmo nosso querido “cabeça de teia”, e talvez os XMen, consigam replicar na Marvel, numa característica que em geral a concorrente DC Comics sempre foi mais feliz em explorar, ou seja, seus núcleos de “pessoas normais” e a base que geram para os protagonistas de suas HQs.


Coisa que fã padrão de quadrinhos em geral se irrita, pois tudo que quer é a exacerbação unilateral daquela característica que para ele define isoladamente o personagem, e da mesma forma que o Batman sofre na DC sendo visto apenas como um mero espancador de criminosos sombrio, aqui o “Amigão da Vizinhança” pena por causa de seu bom humor.
Como se a despeito de toda sua trajetória sofrida, o personagem tivesse que agir como uma stand up comedy ambulante, ou ainda pior, que sua personalidade livre, que só a máscara do Aranha consegue lhe dar, tivesse que ser característica presente em tempo integral.


Mas ao que parece Sam Raimi seguiu o conselho do Tio Ben, de que com grandes poderes vêm grandes responsabilidades, e manteve seu rumo, referenciando sem pudores outras obras de quadrinhos e até brincando (tirando sarro para ser mais específico) do que parte dos fãs bradava ser o correto.


Mas isto vou deixar para segunda parte desta incrível trilogia, seu segundo e marcante filme com uma das melhores cenas de filmes de super-heróis de todos os tempos, e seu tão mal falado terceiro capítulo, mas que ainda sim, possui algumas sacadas geniais.


Então... Até lá!




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