Em 1981, quando o mundo se encontrava encantado com filmes que abordavam extraterrestres, naves e batalhas espaciais, uma produção conjunta norte-americana/inglesa teve a coragem de apostar na antiga Grécia, seus deuses e heróis, seu nome era... Fúria de Titãs!
Dirigido por Desmond Davis, este filme que conta saga de Perseu (Harry Hamlin), filho de Zeus, é um caso raro no qual as características que podiam fazê-lo ficar datado, são justamente aquilo que mantém o interesse das novas gerações vivo.
Duvida?
Bem, para começar a falar de “Fúria de Titãs”, antes de tudo, até mesmo de seu roteiro e elenco, é necessário citar uma das maiores lendas dos bastidores do cinema, Ray Harryhausen.
Ray Harryhausen e suas criações |
O técnico em animação pelo processo de stop motion, que aqui também é um dos produtores do filme, tem aquele que pode ser considerado não apenas seu maior trabalho, como uma espécie de epitáfio de sua longa carreira, já que “Fúria de Titãs” foi a última obra a usar tal técnica de forma massiva em filmes live action, ainda que permanecendo sendo usada em várias películas posteriores, como “Robocop”.
Lógico
que até é compreensível que para gerações mais novas, a forma como as criaturas
criadas por Harryhausen possam parecer estranhas na forma como se movimentam,
mas é inegável que pelo fato de serem “reais” e não figuras criadas numa tela
de computador, nos livram do aspecto incomodo de videogame que volte e meia
alguns filmes mais recentes tentam nos empurrar goela abaixo.
Posto isto, entramos na estória de “Fúria de Titãs”, ou ao menos aquilo que o roteiro nos apresenta, já que algumas adaptações foram feitas para tornar a jornada do herói, digamos, mais heroica.
Logo de cara, somos impactados com a cena do rei da cidade de Argus, levando sua filha Danae e seu neto recém-nascido Perseu, para serem sacrificados, sendo jogados ao mar dentro de um caixão, pois a princesa não tinha como explicar como havia engravidado, o que segundo tradição, desonraria a família do monarca.
Sir Lawrence Oliver era Zeus |
Só
que a criança era filho do próprio Zeus, deus dos deuses (interpretado por
ninguém menos que Sir Lawrence Olivier). E a coisa não termina bem para Argus e
seu rei, que pelo ato de covardia sofrem a brutal retaliação do “Senhor do
Olimpo”, que ordena à Poseidon que libere o Kraken contra a cidade.
E
aqui é preciso abrir logo dois parênteses neste texto... ou talvez três.
O
primeiro são as várias liberdades tomadas, como o citado Kraken, já que o
monstro na verdade é da mitologia nórdica, e não grega.
O
segundo, e que se torna evidente ao longo da película, é que para os policiados
padrões atuais, nunca que “Fúria de Titãs” viraria um clássico infanto-juvenil,
que teve censura de 10 anos ao ser lançado no Brasil, com cenas como o
sacrifício de Danae, alguns leves toques de nudez e até corpos carbonizados em
praça pública.
E o
terceiro parêntese, é que quando me propus a escrever este artigo, tinha como
objetivo evitar ao máximo (se possível nem fazer) citações ao sofrível remake
de 2010, mas isto creio que não vá ser possível.
Bem,
após mandar o Kraken sobre Argus,
Poseidon conduz Danae e Perseu em segurança até uma praia. E o rapaz cresce
feliz e forte.
O problema é que o círculo fechado dos deuses olímpicos era pior que churrasco de família, e a deusa Tetis (Maggie Smith) cujo filho mortal, Calibos (Neil McCarthy), tinha sido também castigado por Zeus, se transformando numa monstro, por uma série de maldades, entre estas o massacre de quase todos os cavalos alados do deus-mor, não aceita que Perseu tivesse tido seu destino de proteção, e seu filho apesar das maldades tivesse sido condenado à deformidade e ao exílio.
Tetis (Maggie Smith) |
Sendo
assim, mamãe Tetis resolve descontar sua raiva em Perseu, o teletransportando
(se é que dá para chamar assim) da praia onde vivia para um anfiteatro
abandonado na cidade de Jopa.
Reza uma lenda urbana que Arnold Schwarzenegger havia sido especulado para o papel de Perseu, mas as dificuldades do austríaco na época com o idioma bretão, fora o físico exagerado que não combinava em nada com a representação conhecida do personagem que era sim atlético, mas não uma montanha de músculos, fizeram tanto o diretor quanto os produtores desconsiderarem sua contratação.
Os deuses do Olimpo |
E este é um ponto que “Fúria de Titãs” foi muito feliz, tentando ao menos aqui se manter fiel a representação clássica da Grécia antiga, seus deuses e heróis. E uma boa prova disto é que os deuses do Olimpo se vestiam todos com alvas túnicas brancas, e não com armaduras como na descabida visão do remake na qual estes mais parecem os “cavaleiros de ouro” de “Cavaleiros do Zoodíaco”.
Afrodite (Ursula Andress) |
Ou alguém consegue imaginar a deusa do amor, Afrodite (Ursula Andress) de armadura de combate? (risos)
Amon (Burguess Mereditih) |
Enquanto isto no anfiteatro, sem entender nada do estava acontecendo, Perseu trava contato com Amon (nosso inesquecível Burguess Meredith, eterno Pinguim do seriado do Batman, e Mickey o treinador de Rocky Balboa), um artista e poeta que ainda habitava o lugar. E lhe explicado como aquele lugar e a cidade de Jopa tinham caído em desgraça, amaldiçoados por Tetis.
Calibos (Neil McCarthy) |
Tudo também por causa de Calibos, que estava noivo da bela princesa Andrômeda (Judie Bowker), até ser castigado por Zeus.
Andromêda (Judie Bowker) |
Zeus
que ao ver o que tinha sido feito ao seu filho, não deixa o rapaz sem suporte,
lhe ofertando três armas especiais: um elmo que dava a quem usasse o poder da
invisibilidade, uma espada de lâmina tão poderosa que faria He-Man ficar com
vergonha e um escudo pelo qual enfim Perseu descobre sua verdadeira origem.
Só
que o rapaz ao invés de ficar quieto, resolve dar um passeio por Jopa, no qual
se depara com um mundo totalmente novo para ele, e fica sabendo sobre Andrômeda
e a maldição que recaía sobre a princesa, seus pretendentes que tinham de
decifrar um enigma ou seriam executados, e como isto se refletia sobre toda a
cidade.
E
Perseu fica sossegado? Que nada!
E é
aqui que de fato toda a aventura tem início, pois usando do elmo, Perseu invade
os aposentos de Andrômeda, e descobre que toda a noite um abutre gigante ia até
a sacada, e a alma da princesa era “sequestrada” por Calibos, que era o autor
dos enigmas.
Mas como nosso amigo Perseu, agora apaixonado, ia resolver aquele problema? Como seguir a gigantesca ave?
Perseu tenta domar Pégaso |
E a
resposta lhe é dada por Amon. Pégaso, o último dos cavalos alados. Com ele,
Perseu poderia seguir o abutre, até onde levava a alma de Andrômeda. Na
mitologia grega, é Balarofonte quem consegue “domar” Pégaso, mas aqui, seguindo
aquilo que citei alguns parágrafos acima, tal feito fica por conta de Perseu,
que vai assim até os domínios de Calibos, descobre a resposta ao enigma, mas é
descoberto pelo “senhor do lodo”, com o qual entra em luta, perdendo o elmo da
invisibilidade.
E aqui eu preciso com certo pesar, citar aquele que é talvez o único ponto vexatório deste ótimo filme, pois apesar de todo empenho de Ray Harryhausen em criar seus personagens em stop motion, e o excepcional trabalho de maquiagem em Calibos, os ajudantes do vilão são uma piada involuntária à parte, parecendo aqueles homens da caverna da “Família Dinossauro”.
A partir daí, Perseu retorna a Jopa, responde ao enigma, e vai se casar com Andrômeda. Só que a rainha Cassiopéia (Syan Phiplips) na hora de celebrar as bodas da filha não se contém e faz comparações entre a beleza de Andrômeda e da própria deusa Tetis. O que obviamente ativa o “modo fúria” da deusa, que já tinha até passado uma descompostura no filho, querendo dar fim aquilo tudo, mas que diante da bravata de Cassiopéia, ordena que Andrômeda seja sacrificada em trinta dias ao Kraken, para que Jopa fosse poupada.
Resumindo.
Mais problema para Perseu resolver.
E não era pouca coisa, pois ele precisava encontrar um jeito de deter o Kraken. E novamente Amon dá a deixa ao jovem amigo. Ir até três bruxas cegas antigas que segundo contavam, tinham por hábito comer carne humana.
Vendo que a jornada de seu filho seria perigosa, Zeus decide lhe dar mais um presentinho, e ordena que Athena (Susan Fleetwood) dê à Perseu, sua coruja de estimação, Bubo. Mas apegada ao seu pet, Athena vai até Hefestos (Pat Roach), o armeiro dos deuses, e este cria uma versão mecânica (ou seja, um robô) da corujinha, dando uma das melhores memórias que toda uma geração teve numa poltrona de cinema.
E
aqui preciso abrir o maior parêntese da história deste blog.
Como já citei antes em outros artigos, não sou destes chatos que pensa que tudo numa nova versão de uma obra tem de replicar ispis literis a obra original, e muito menos ficar soltando frases feitas bestas em rede social do tipo “destruíram minha infância”. Mas o que fizeram com Bubo no remake de 2010, é de um cinismo e deboche tamanho, que de fato me deixou um gosto amargo na boca, ao assistir a cena em que a corujinha é encontrada no meio de um monte de armas e tratada como um lixo.
E
só posso classificar a cena, como mais uma bravata de pessoas ávidas por
venderem uma suposta “visão moderna”, que militarizaram a nova versão, e nos
tiraram todo teor lúdico que fez a fama do filme original.
Além disto, não posso deixar de mencionar a opinião equivocada, de certos “entendidos” em cinema, que querem imputar à Bubo a responsabilidade de ser um suposto ponto baixo de “Fúria de Titãs” por esta ter sido pensada em cima do R2D2 de “Guerra nas Estrelas”. Pois se isto fosse assim, o próprio R2D2 seria um ponto fraco da saga de George Lucas por ter sido pensado em cima do IQ9 de “Patrulha Estelar”.
E por falar em saga, Perseu, agora com a companhia de Bubo, continua a sua, indo até as bruxas que dizem que a única forma dele deter o Kraken seria usar a cabeça da Medusa, transformando o titã em pedra.
A medusa e suas duas versões |
Mas lógico que a Medusa não daria sua cabeça de bom grado, e temos aí mais uma sequência em que brilha o talento de Ray Harryhausen, na qual o mestre do stop motion nos dá uma versão realmente apavorante da górgona, bem diferente da Medusa com perfil de modelo de 2010.
Calibos ainda tenta atrapalhar obviamente a jornada do herói, tendo até sequestrado Pégaso, mas nada que a corajosa Bubo não resolva.
E temos a sequência final, feita num ritmo perfeito, sublimada pela ótima trilha sonora, e que ao contrário da versão modernosa deixa o espectador curtir aquele momento, ao invés de tentar causar-lhe uma pane mental impondo um ritmo desnecessariamente frenético.
Muitos hoje até podem tentar usar do bizarro argumento que “Fúria de Titãs” não é um filme que teria “envelhecido bem”, mas no frigir dos ovos, mesmo usando técnicas consideradas ultrapassadas, permanece sendo lembrado e descoberto por novas gerações quase quarenta anos depois, justamente por ter sabido amalgamar seus diversos elementos, se tornando uma obra atemporal.