Começo
dos anos 80. O mundo dos quadrinhos parecia já ter passado por quase todas as
mudanças que podia.
Dennis
O’Neil e Neal Adams já haviam revirado a problemática sociedade estadunidense
com a saga do Arqueiro e Lanterna Verde do qual já fiz artigo aqui. Steve
Englehart e Marshall Rogers já haviam mostrado um Batman mais focado nas
relações interpessoais do “cruzado encapuzado” e ainda tínhamos o ótimo
Esquadrão Atari de Gerry Conway já em sua segunda e clássica versão com a arte
do mestre José Luiz Garcia Lopez.
Mas
eis que em 1982, Mike W. Barr e o incrível Brian Bolland começaram a mostrar
que nem tudo havia sido feito.
Nascia
ali Camelot 3000.
Baseada
em duas das mais importantes obras sobre a lenda de Arthur – Le Morte D’Arthur
de Sir Thomas Malory (1485) e O Único e Eterno Rei de T.H White (1958) -, com
uma invasão alienígena e reencarnação, a primeira vista Camelot 3000 parece ser
a receita perfeita para uma catástrofe, contudo, quando as peças começam a se
unir, oque temos, talvez seja a mais importante HQ de todos os tempos.
Tom Prentice lendo "Le Morte D'Arthur" - Referência pouca é bobagem |
Mas
por que Camelot 3000 é tão importante?
Para
começar precisamos antes nos situar historicamente, pois nesta época ainda era
pesada a patrulha do famigerado “COMICS CODE AUTORITHY ’’, que apesar de já
estar bem mais tolerante que no passado, ainda era um entrave quando se tratava
de mostrar coisas como cadáveres ou cenas de sexo mais explícitas, oque fez a
DC Comics na época de seu lançamento partir para um esquema de venda direta ao
público para fugir da censura.
Esquema
que funcionou perfeitamente, mas que aqui precisamos salientar que teve uma
ajudinha e tanto do formato em que história seria apresentada, como uma série
fechada, a ser completa no fim de 12 edições. Oque mais tarde ficou conhecido
como “maxi série”, algo que muitos hoje gostam de atribuir a obras mais
recentes como Watchmen de Alan Moore, mas que de fato teve sua raiz aqui em
Camelot 3000.
Bolland e Barr - Os geniais realizadores de Camelot 3000 |
Mas
isto seria suficiente para criar a verdadeira lenda urbana que existe em torno
desta obra? Claro que não!
E é
aqui que a coisa começa ficar digamos... Interessante.
Na
história, no ano 3000 (obvio, eu sei, desculpa aí), a Terra é invadida por
alienígenas comandados por ninguém menos que Morgana LeFay, também uma alienígena.
Mas é em meio a este caos que um trabalhador da construção civil londrina, Tom
Prentice, faz por puro acaso (será?) uma incrível descoberta, o túmulo de
Arthur Pendragon, o Rei Arthur, que acorda de seu sono de séculos, para em
seguida termos o retorno do mago Merlin.
Arthur e seus cavaleiros partem para a batalha enquanto Merlin lhes observa. |
Passando
a ficar ciente do que ocorria, Arthur decide ir atrás dos cavaleiros da távola
redonda. Só que ao contrário do bom rei, seus cavaleiros estavam reencarnados
em outros corpos. E aqui começa aquilo que torna Camelot 3000 uma obra a frente
de seu tempo.
Lancelot
era um milionário francês que ajudava refugiados de guerra; a rainha Guinevere
era uma militar, comandante das forças de defesa terrestre; Kay, o meio-irmão
de Arthur um viciado em jogo que foge de seus credores; Gawain era um pai de
família negro na África do Sul (isto publicado numa época em que o regime
de segregação do Apartheid ainda vivia forte naquele país); Galahad um samurai
que caiu em desgraça após perder seu mestre e que estava prestes a cometer sepuku, quando recebe por assim dizer, o
chamado de seu “eu” do passado.
Parece
que está bom? Pois ainda havia os casos de Percival e Tristão.
Percival
era um dissidente político, que para ser calado foi condenado a sofrer uma
mudança genética, tornando-se um “Neo-Humano”, uma raça de símios criada em
laboratório, mais inteligentes que macacos, porém, não tão inteligentes como os
humanos, e o mais importante aqui, sem a consciência real de quem eram de fato,
para realizarem trabalhos pesados. Algo que em nada tem a ver com acidentes com
radiação ou algo contaminado que alterasse a condição do personagem como era comum
nos quadrinhos até então. Colocando aqui para reflexão, a manipulação genética e
seus perigos, bem antes que o tema se tornasse algo corriqueiro, aqui usada como
punição, além de nas entrelinhas colocar a questão de os animais possuírem
alma.
Percival encontra o "Santo Graal", mostrando que apesar de sua aparência era o mais honrado de todos os cavaleiros. |
E
lógico, o caso de Tristão, ou melhor Trista, que nesta vida havia reencarnado
como mulher, e que recebe seu “chamado” justamente no momento em que estava
prestes a casar. E todos os desdobramentos que isto provoca em sua vida, pois a
moça ao ser tomada pelas memórias e consciência de quem um dia foi, passa a
renegar veementemente sua condição como mulher.
Trista não consegue conviver com sua "nova condição" deixando Isolda desolada. |
Problema
que só aumenta ao descobrir que sua amada Isolda - também desperta pelo retorno
de Arthur - tinha voltado novamente como mulher, e que complica ainda mais
quando Tom se apaixona por ela. Um mixer
de sentimentos e pensamentos tão conflitantes que faz Trista inclusive tentar o
suicídio.
Guinevere e Lancelot - Assim como no passado a rainha não se decidia com quem ficar. |
Isso
somado a coisas como a infidelidade de Guinevere tendo relações hora com
Lancelot, hora com Arthur, engravidando sem saber ao certo quem seria o pai. E
mais uma infinidade de situações extremamente ligadas com questões não apenas
muito reais, como também na esfera do pensamento filosófico e até mesmo
teológico, mas que fluíam de forma perfeita ao longo da história de ação
alucinante.
Tudo
colocado sabiamente para a reflexão de quem estava lendo, e claro conseguisse
captar oque estava ali, mas em momento algum levantando qualquer tipo de
bandeira.
Isolda e Trista enfim juntas. - Algumas cenas de sexo sofreram com a censura brasileira da época |
Camelot
3000 foi publicada no Brasil pela primeira vez entre 1984 e 1985 nas revistas
“Superamigos” e do “Batman”, no icônico “formatinho” da Abril, no qual haviam
varias histórias de diferentes personagens na mesma revista.
Edição histórica da revista "Superamigos" com o encerramento da saga |
Na
época sofrendo pequenas edições devido a censura ainda vigente, mas nada que mudasse
de fato o conteúdo do que era lido ou visto. Sendo republicado mais quatro
vezes, uma na forma de uma minissérie de quatro edições, e mais três em formato
único, a primeira em 2005, a segunda em 2010, e agora em 2018!
As quatro edições do primeiro relançamento ainda pela Editora Abril |
Sim!
Pois trinta e seis anos após seu lançamento, a história que abordava temas como
totalitarismo, homofobia e toda sorte de preconceitos ainda permanece mais atual
que 90% das HQ’s produzidas nos dias atuais, e que provavelmente ainda
permanecerá assim por um bom tempo. Mantendo viva não só a lenda de Arthur e
seus cavaleiros, como cumprindo com a tarefa de tornar um pouco mais amplo o
campo de visão daqueles que a leem.
Camelot 3000 - Uma HQ a frente de seu tempo. |
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