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terça-feira, 27 de março de 2018

Camelot 3000

Começo dos anos 80. O mundo dos quadrinhos parecia já ter passado por quase todas as mudanças que podia.
Dennis O’Neil e Neal Adams já haviam revirado a problemática sociedade estadunidense com a saga do Arqueiro e Lanterna Verde do qual já fiz artigo aqui. Steve Englehart e Marshall Rogers já haviam mostrado um Batman mais focado nas relações interpessoais do “cruzado encapuzado” e ainda tínhamos o ótimo Esquadrão Atari de Gerry Conway já em sua segunda e clássica versão com a arte do mestre José Luiz Garcia Lopez.
Mas eis que em 1982, Mike W. Barr e o incrível Brian Bolland começaram a mostrar que nem tudo havia sido feito.

Nascia ali Camelot 3000.


Baseada em duas das mais importantes obras sobre a lenda de Arthur – Le Morte D’Arthur de Sir Thomas Malory (1485) e O Único e Eterno Rei de T.H White (1958) -, com uma invasão alienígena e reencarnação, a primeira vista Camelot 3000 parece ser a receita perfeita para uma catástrofe, contudo, quando as peças começam a se unir, oque temos, talvez seja a mais importante HQ de todos os tempos.

Tom Prentice lendo "Le Morte D'Arthur" - Referência pouca é bobagem

Mas por que Camelot 3000 é tão importante?
Para começar precisamos antes nos situar historicamente, pois nesta época ainda era pesada a patrulha do famigerado “COMICS CODE AUTORITHY ’’, que apesar de já estar bem mais tolerante que no passado, ainda era um entrave quando se tratava de mostrar coisas como cadáveres ou cenas de sexo mais explícitas, oque fez a DC Comics na época de seu lançamento partir para um esquema de venda direta ao público para fugir da censura.



Esquema que funcionou perfeitamente, mas que aqui precisamos salientar que teve uma ajudinha e tanto do formato em que história seria apresentada, como uma série fechada, a ser completa no fim de 12 edições. Oque mais tarde ficou conhecido como “maxi série”, algo que muitos hoje gostam de atribuir a obras mais recentes como Watchmen de Alan Moore, mas que de fato teve sua raiz aqui em Camelot 3000.

Bolland e Barr - Os geniais realizadores de Camelot 3000

Mas isto seria suficiente para criar a verdadeira lenda urbana que existe em torno desta obra? Claro que não!
E é aqui que a coisa começa ficar digamos... Interessante.
Na história, no ano 3000 (obvio, eu sei, desculpa aí), a Terra é invadida por alienígenas comandados por ninguém menos que Morgana LeFay, também uma alienígena. Mas é em meio a este caos que um trabalhador da construção civil londrina, Tom Prentice, faz por puro acaso (será?) uma incrível descoberta, o túmulo de Arthur Pendragon, o Rei Arthur, que acorda de seu sono de séculos, para em seguida termos o retorno do mago Merlin.

Arthur e seus cavaleiros partem para a batalha enquanto Merlin lhes observa.

Passando a ficar ciente do que ocorria, Arthur decide ir atrás dos cavaleiros da távola redonda. Só que ao contrário do bom rei, seus cavaleiros estavam reencarnados em outros corpos. E aqui começa aquilo que torna Camelot 3000 uma obra a frente de seu tempo.
Lancelot era um milionário francês que ajudava refugiados de guerra; a rainha Guinevere era uma militar, comandante das forças de defesa terrestre; Kay, o meio-irmão de Arthur um viciado em jogo que foge de seus credores; Gawain era um pai de família negro na África do Sul (isto publicado numa época em que o regime de segregação do Apartheid ainda vivia forte naquele país); Galahad um samurai que caiu em desgraça após perder seu mestre e que estava prestes a cometer sepuku, quando recebe por assim dizer, o chamado de seu “eu” do passado.



Parece que está bom? Pois ainda havia os casos de Percival e Tristão.
Percival era um dissidente político, que para ser calado foi condenado a sofrer uma mudança genética, tornando-se um “Neo-Humano”, uma raça de símios criada em laboratório, mais inteligentes que macacos, porém, não tão inteligentes como os humanos, e o mais importante aqui, sem a consciência real de quem eram de fato, para realizarem trabalhos pesados. Algo que em nada tem a ver com acidentes com radiação ou algo contaminado que alterasse a condição do personagem como era comum nos quadrinhos até então. Colocando aqui para reflexão, a manipulação genética e seus perigos, bem antes que o tema se tornasse algo corriqueiro, aqui usada como punição, além de nas entrelinhas colocar a questão de os animais possuírem alma.

Percival encontra o "Santo Graal", mostrando que apesar de sua aparência era o mais honrado de todos os cavaleiros.

E lógico, o caso de Tristão, ou melhor Trista, que nesta vida havia reencarnado como mulher, e que recebe seu “chamado” justamente no momento em que estava prestes a casar. E todos os desdobramentos que isto provoca em sua vida, pois a moça ao ser tomada pelas memórias e consciência de quem um dia foi, passa a renegar veementemente sua condição como mulher.

Trista não consegue conviver com sua "nova condição" deixando Isolda desolada.

Problema que só aumenta ao descobrir que sua amada Isolda - também desperta pelo retorno de Arthur - tinha voltado novamente como mulher, e que complica ainda mais quando Tom se apaixona por ela. Um mixer de sentimentos e pensamentos tão conflitantes que faz Trista inclusive tentar o suicídio.

Guinevere e Lancelot - Assim como no passado a rainha não se decidia com quem ficar.

Isso somado a coisas como a infidelidade de Guinevere tendo relações hora com Lancelot, hora com Arthur, engravidando sem saber ao certo quem seria o pai. E mais uma infinidade de situações extremamente ligadas com questões não apenas muito reais, como também na esfera do pensamento filosófico e até mesmo teológico, mas que fluíam de forma perfeita ao longo da história de ação alucinante.
Tudo colocado sabiamente para a reflexão de quem estava lendo, e claro conseguisse captar oque estava ali, mas em momento algum levantando qualquer tipo de bandeira.

Isolda e Trista enfim juntas. - Algumas cenas de sexo sofreram com a censura brasileira da época

Camelot 3000 foi publicada no Brasil pela primeira vez entre 1984 e 1985 nas revistas “Superamigos” e do “Batman”, no icônico “formatinho” da Abril, no qual haviam varias histórias de diferentes personagens na mesma revista.

Edição histórica da revista "Superamigos" com o encerramento da saga

Na época sofrendo pequenas edições devido a censura ainda vigente, mas nada que mudasse de fato o conteúdo do que era lido ou visto. Sendo republicado mais quatro vezes, uma na forma de uma minissérie de quatro edições, e mais três em formato único, a primeira em 2005, a segunda em 2010, e agora em 2018!

As quatro edições do primeiro relançamento ainda pela Editora Abril

Sim! Pois trinta e seis anos após seu lançamento, a história que abordava temas como totalitarismo, homofobia e toda sorte de preconceitos ainda permanece mais atual que 90% das HQ’s produzidas nos dias atuais, e que provavelmente ainda permanecerá assim por um bom tempo. Mantendo viva não só a lenda de Arthur e seus cavaleiros, como cumprindo com a tarefa de tornar um pouco mais amplo o campo de visão daqueles que a leem.

Camelot 3000 - Uma HQ a frente de seu tempo.






















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