quinta-feira, 22 de novembro de 2018

Bubblegum Crisis


Estamos no ano de 2032. Setes anos antes, Tóquio tinha sido literalmente dividida em duas por um grande terremoto, que também serviu para expor de forma escancarada a divisão social da cidade, vivendo sob a sombra do conglomerado empresarial chamado GENOM e sua torre, que através de seu poder econômico na prática era uma espécie de governo paralelo.
Uma sociedade onde a mão de obra humana tinha sido substituída na maior parte pelos Boomers, androides produzidos pela mesma GENOM, que por vezes resolvia usar as ruas da agora rebatizada “Mega Tóquio” como campo de testes de seus produtos, ignorando toda e qualquer autoridade pra isto.
Mas em meio a este ambiente de caos urbano, quatro vigilantes (e em alguns momentos mercenárias), vestidas com tecnológicas armaduras, autodenominadas Knight Sabers surgem para combater a injustiça.
E é com este argumento inicial que em 1987 o mundo é apresentado a uma das melhores series de OVA, e por que não um dos melhores exercícios de futurologia já feitos, falo de... Bubblegum Crisis!



Contando com cerca de oito episódios (sendo que uma lenda urbana dá conta que o previsto seria treze), Bubblegum Crisis é numa olhada menos atenta uma tremenda miscelânea de diversas inspirações que passam obrigatoriamente pelos clássicos “O Exterminador do Futuro” do qual ao menos os Boomers de combate são explicitamente inspirados, e também por “Blade Runner” do qual muito se inspira no visual de Mega Tóquio.

Boomers de combate - Inspiração direta de Exterminador do Futuro

Mas isto sempre foi algo absolutamente claro, tanto é que Priss Asagiri, a mais durona das Knights Sabers, era uma cantora que tinha uma banda que se chamava justamente “Priss and the Replicants”. Lembrando que Priss também era o nome da personagem de Daryl Hannah em Blade Runner.
Juntamente com Priss completavam o time das Sabers: Sylia Stingray, a líder do grupo e filha mais velha de um antigo cientista da GENOM que secretamente criou as armaduras chamadas hard suits, usadas pelas heroínas; Nene Romanova uma policial; e Linna Yamazaki uma ex-bailarina.

Nene, Linna, Sylia e Priss - As Knight Sabers

Ainda recebendo a ajuda de Mackie, irmão mais novo de Sylia, o único, que junto com um cientista aposentado, sabiam das identidades das Knights Sabers.
Mas como todos os vigilantes, suas ações obviamente ilegais, despertam a ação das autoridades, em especial de Leon McNichol, policial veterano da AD Police, uma divisão a parte da polícia que investigava crimes de alta tecnologia, em especial aqueles realizados por Boomers que, ou surtavam por algum defeito, ou eram usados por seus proprietários, coisa que a GENOM lógico fazia a torto e a direito.

Leon McNichol

Então, afinal o que esta animação japonesa tem de diferente de tantas outras dentro do conceito de cyber punk?
Primeiro é preciso entender a própria história desta animação, pois Bubblegum Crisis a princípio fracassou em seu país de origem. Entenda-se aí fracasso uma receptividade baixa em relação ao que os produtores da série, os estúdios Artmic e Youmex esperavam. Mas foi quando BBC (sigla pela qual a franquia é também conhecida) atravessou o oceano indo aportar nos Estados Unidos, que o jogo começou a virar.


Ainda que naquela época, as animações nipônicas já tivessem certa popularidade em terras de Tio Sam, suas vendas diretas ao público eram extremamente restritas a uma parcela específica de público.
Mas Bubblegum Crisis, seja pelas sequências de ação, seja pelo afiado senso de humor de alguns de seus diálogos, as referências aos clássicos já citados do cinema estadunidense ou até mesmo pelas suas ótimas canções que eram não só um diferencial como um dos maiores atrativos da animação arregimentou uma legião de fãs.


Canções que não se repetiam, tendo temas para cada novo episódio, cada um com uma abertura diferente, oque dava a cada novo capítulo uma identidade pessoal.
Isto dentro de uma animação que se eu fosse resumir em uma palavra seria “equilíbrio”. Mas por que “equilíbrio”?
Bem, se você que está lendo tem um contato maior com este universo de animes, deve saber de cátedra o quanto vários deles são proposital e/ou desnecessariamente apelativos na tentativa, por vezes até bem sucedida, de conseguir parcelas de público.


Só que Bubblegum Crisis, possui algumas características que se não são exclusividade da animação se tonaram bastante raras com o tempo, como os roteiros que apesar de toda a ambientação futurista primavam por tratar na maioria das vezes das relações interpessoais. Sempre aproveitando para questionar o quanto as megacorporações interferiam nas vidas das pessoas e o quanto isto era nocivo, antevendo em algumas décadas algumas realidades que até já existiam na época, mas que pareciam maximizadas demais quando a animação foi produzida.
Fora isto, ou até mesmo dentro deste gancho, ainda há o implícito triângulo (não necessariamente amoroso) que envolvia Priss, Leon e Dailey Chong o parceiro de trabalho de McNichol. Basicamente para se entender: Leon era a fim de Priss que era lésbica, sendo que Dailey que era gay era a fim de Leon e não perdia uma oportunidade de fazer uma insinuação ou piada que deixasse o policial numa “saia justa”, criando ganchos cômicos excelentes.

Leon, Dailey e a AD Police

Mas em meio tantos pontos positivos, há os negativos?
Na opinião deste escriba, talvez o grande ponto negativo de Bubblegum Crisis resida que várias de suas situações e ganchos de continuidade ficam meio que no ar sem uma explicação definida, oque de certa forma pode confirmar a teoria do projeto de treze episódios que citei.
Tanto que a forma como as Knight Sabers se reuniram acabou sendo contada apenas num videoclipe para a música “Asu E Touchdown" que faz parte da trilha sonora do terceiro episodio, “Blow Up".


Contudo, o sucesso alcançado possibilitou que BBC ganhasse uma série prequel chamada AD Police Files. Esta com um tom bem mais sério e até mesmo mais pesado que a “série mãe“, se passando em 2027, quando a AD Police começava a se estruturar, mais parecendo um exército de mercenários. E tem como personagem principal, ainda que não necessariamente central, Leon McNichol.

Em AD Police, Leon ainda é um novato transferido da "polícia comum"


AD Police File #1 - A Mulher Fantasma


AD Police File #2 - O Estripador


AD Police File #3 - O Homem que Mordia a Língua

Mas a situação da franquia em terras nipônicas pouco se alterou em termos de receptividade na época, oque gerou o rompimento entre o Artimic e o Youmex. Talvez por isto o último episódio de BBC, “Schoop Chase Lisa" ao contrário dos anteriores que foram progressivamente ganhando em qualidade, pareça mais do mesmo, destoando inclusive do caracter design da série que conforme foi passando foi evoluindo para um traço cada vez mais realista.
Seria então o fim das Knight Sabers?
Bem, ainda não, pois mesmo depois do rompimento da parceria com o Youmex, o estúdio Artmic resolveu ainda investir em Sylia e companhia, produzindo de uma só vez três episódios que ganharam o nome de Bubblegum Crash. Uma espécie de minissérie que conseguiu manter algumas características da obra original, em especial por recuperar caracter design de Kenichi Sonoda perdido no último episódio de Crisis.


Esta seria uma espécie de versão comprimida do final do projeto original, mas acabou perdendo, e bastante, no que diz respeito ao roteiro, justamente, ao menos a meu ver, por passar batido por aqueles elementos humanos que citei alguns parágrafos acima.

Um dos esboços de Kenichi Sonoda para o maquinário de BBC

Fora o fato que a Youmex processou a Artmic, numa briga judicial que se arrastou até a falência da Artmic no fim dos anos 90, cujo espólio hoje pertence a outro estúdio, o AIC.
Ainda sim, o boca a boca, e o bom e velho “contrabando” de fitas VHS, já havia transformado a pequena centelha em fogaréu, fazendo a saga Bubblegum Crisis não apenas conhecida, como cultuada em várias partes do mundo, isto bem antes da internet ter virado este universo que conhecemos hoje.


E os fãs... Ahhh... Os fãs... Aqueles que por mais de uma vez citei aqui, que não deixam o objeto de sua paixão morrer, novamente entraram em cena. Desta vez na figura do escritor e quadrinista norte-americano Adam Warren, um dos primeiros artistas estadunidenses a desenhar e publicar trabalhos no estilo mangá, que escreveu uma série de HQ’s chamada, Bubblegum Crisis: Grand Mal.

Fora os óbvios "mangás", BBC ganhu uma versão norte-americana em HQ

Até que em março de 1999 chega o retorno das Knight Sabers à sua mídia original.
Era Bubblegum Crisis 2040. Não uma continuação, mas sim um reeboot. Uma série para tevê que teve 26 episódios e acabou sendo o primeiro contato de muita gente com o universo BBC, mas que infelizmente não dá pra dizer que tenha sido um bom contato, pois todos os elementos que faziam de Bubblegum Crisis algo quase único, foram sumariamente exterminados.
Da trilha sonora que passou das ótimas composições estilo pop/hard rock, para um eletrônico pra lá de irritante, passando pela mudança de personalidade dos personagens que foram absolutamente descaracterizados, até chegar a se tentar emular um romance fofo tradicional entre Priss e Leon.


Só servindo para reforçar a lenda de Mega Tóquio e suas justiceiras em armaduras de titânio como um dos melhores trabalhos de animação já produzidos na terra do sol nascente.














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