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terça-feira, 12 de maio de 2020

Desmitificando Watchmen

O que faz uma obra se tornar um clássico?
Apenas seus atributos que fazem sua fama num processo natural de “boca a boca” entre seu público?
Ou uma refinada conjunção de fatores, que por vezes só ocorrem para atender a interesses que muitas vezes passam longe de qualquer viés que possa ser considerado artístico?
E o quanto que o público alvo de tal obra é capaz de conseguir interpretá-la corretamente e ainda construir uma opinião de fato pessoal baseada em sua própria perspectiva?
Caso você que esteja lendo tenha estranhado a introdução deste texto, peço que antes de prosseguir em sua leitura faça estas perguntas a si mesmo. Não é preciso tentar buscar alguma resposta agora. Apenas levantei tais questionamentos, pois este com certeza é um dos textos mais fáceis e ao mesmo tempo mais complicados que me propus a fazer.


Pois como já no título está descrito, este artigo se propõe a desmistificar a icônica obra dos quadrinhos escrita pelo “bruxo” Allan Moore e desenhada de forma primária por Dave Gibbons que há anos todos os ditos veículos especializados em cultura pop ficam repetindo se tratar de uma obra-prima.
Rótulo este que pessoalmente sempre contestei por uma série de motivos, que infelizmente de um modo meio didático (coisa que detesto fazer) pretendo explicar, sobre o qual há um culto totalmente descerebrado, norteado por “verdades absolutas” tolas e convenientes que por si só já entram em contradição com a própria estória. Já que muitas (para não dizer todas) as características de Watchmen já tinham sido apresentadas em outras obras antes.
A primeira, mais obvia, factual e inconteste é o seu formato, mais conhecido como “maxi-serie”. Uma estória fechada que corre ao longo de algumas edições, em geral doze. Algo que como sabemos começou lá em 1982 com “Camelot 3000”.
Em condições digamos “normais” e saudáveis de debate isto nem deveria ser preciso citar, mas infelizmente quando se trata de Watchmen e seu séquito de seguidores, é algo que precisa ser citado sim. Até porque existem páginas na web que insistem em divulgar tal informação equivocada como sendo correta, tratando a HQ de Moore como desbravadora do formato.

Camelot 3000 - A verdadeira primeira maxi-série

E por falar em “Camelot 3000”, outra bobagem que os seguidores de Watchmen tentam argumentar é que a clássica HQ de Mike W Barr, e magistralmente desenhada por Brian Bolland não poderia ser considerada uma “HQ de Super Herói” e por isto não deveria ser levada em consideração.
Mas vamos parar por um momento para fazermos um pequeno exercício de memória. Vamos pegar o termo “super-herói” dentro de sua forma mais circunspecta.
Quantos seres incríveis existem em Watchmen? Pelo que eu me lembre o único personagem que se enquadra nesta categoria é o Dr.Manhathan, sendo todos os demais “heróis” da saga pessoas comuns ainda que com certas habilidades que a maioria as pessoas não tem, mas ainda sim, pessoas normais como eu ou você que está lendo.
Ok. Eu sei que neste exato momento se você é um fã (nático) por Watchmen deve estar com a resposta (em forma de pergunta) na ponta da língua, exigindo a contraparte em “Camelot 3000” certo?
E a resposta é: Arthur Pendragon.
Sim! Nosso bom rei, que retornou dos mortos milhares de anos depois. Ou vai me dizer que voltar dos mortos é pouca coisa? E nem vou entrar no mérito do mago Merlin aqui, ou de Percival que teve sua genética alterada.
Explicada esta parte, é preciso entender oque Allan Moore queria mostrar ao escrever Watchmen. E vamos ser sinceros, já se passou tempo suficiente para todos concordarmos que o principal plot da HQ é questionar a validade de heróis e principalmente a validade de seu culto, apenas usando do pano de fundo (como tantas outras obras da época) a questão de um eminente conflito nuclear.
E para isto Moore mostra seus personagens como seres absurdamente falhos, com erros de julgamento e até egoístas em alguns momentos.

Heróis de comportamento falho já haviam sido mostrados bem antes "Watchmen"...

Mas espera um pouco! Isto já tinha sido mostrado bem antes também. Na clássica saga escrita por Dennis O’Neil e soberbamente desenhada por Neal Adams que uniu Lanterna Verde e Arqueiro Verde ainda no comecinho dos anos 1970.
E isto pode ser muito bem exemplificado na icônica cena na qual Oliver Queen descobre que seu protegido Roy Harper se tornou um viciado em heroína, e o verniz de progressista e tolerante de Queen cai por terra.

...como na saga Lanterna e Arqueiro Verde

Tudo bem. Eu sei que neste momento alguém deve estar bradando e rangendo os dentes que Watchmen é um “capítulo” diferente na história dos quadrinhos, pois supostamente foi a primeira HQ a receber o rótulo de literatura, principalmente pelo suposto “teor adulto”.
Bem, acredito que este “teor adulto” já foi bem explicado nos parágrafos acima, não é? Mas ainda sobra a questão da literatura.

"A Torre do Elefante" - Um dos contos de Robert Howard transposto para os quadrinhos

Poderia até ficar citando exemplos de obras que saíram da literatura convencional e foram transpostas para os quadrinhos, como alguns contos de Robert E. Howard.
Mas para explicar este factoide melhor vou dividir as minhas considerações em duas partes: “Quem disse” e “Quem acreditou em quem disse”.
Na parte do “Quem disse” precisamos entender a época em que Watchmen, assim como outras HQ’s como “Cavaleiro das Trevas” ou “A Queda de Murdock” foram lançadas.


Em meados dos anos 1980 a mídia sobre cultura pop começava a querer aprender a andar com as próprias pernas, mas assim como qualquer bebê que tenta o mesmo, mais tropeçava e caía que realmente andava. E óbvio que como uma criança pequena, estava sempre tutelada por um adulto por perto, neste caso um veículo de comunicação maior. Mesmo se levarmos em consideração veículos de comunicação que supostamente seriam ligados à cultura pop como algumas revistas com nome de bandas de rock por exemplo.
Isto quando os ditos “especialistas” (argh!) no assunto não estavam atrelados aos famigerados “segundos cadernos” dos tabloides matutinos.
E não pensem que tais “jornalistas” eram pessoas experientes na arte da observação não. Salvo honrosas exceções, estas figuras que infelizmente (principalmente em países subdesenvolvidos culturalmente) tiveram uma esfera de influência razoável pelo menos até a segunda metade da década de 90, sempre se mostraram formas de vida ávidas em evoluir rápido em seu meio.
Para os quais o mais importante era se promover fazendo parecer para os menos experientes que aquilo que eles resenhavam naquele exato momento era a maior novidade do planeta, quase a reinvenção da roda.
Mesmo que soubessem que não era nada daquilo.


Aí entramos na segunda parte, “Quem acreditou em quem disse”.
E para descrever isto preciso contar um fato real.
Na década de 1990 ainda tinha por hábito ler algumas resenhas de música que vinham no segundo caderno de um conhecido tabloide (ainda que costumasse a não concordar com nada ali). E certa vez li uma resenha do álbum “Cross Purposes” do Black Sabbath. Naquele mesmo dia, só que na parte da tarde, estava eu numa loja de discos, e ao meu lado dois sujeitos de pouca idade que conversavam.
E um destes cidadãos descreveu o mesmo álbum do Black Sabbath para o amigo, usando ipis literis, as mesmas palavras do artigo postado no tabloide naquela manhã, como se as palavras fossem dele!
Um episódio real, que na época me abriu os olhos para a verdade do público médio de qualquer forma de arte, que se considera muito diferente por ler determinada obra, ou ouvir determinada música.


Acredito que com isto tenha conseguido explicar bem como o público alvo daqueles que promoveram a aura que envolve “Watchmen” se comporta. E isto também serve para explicar como o próprio Allan Moore e outros escritores em algumas obras, sabendo como funcionam as cabeças de seu público alvo, inserem elementos para criar oque hoje chamamos de hype.
Aspectos que trabalhos seminais como a “Camelot 3000” e a saga “Lanterna e Arqueiro” já citadas, ou até “Esquadrão Atari”, cada um com sua devida parcela de responsabilidade já tinham mostrado, mas que não foram esfregados na cara do leitor como uma torta em um filme pastelão.


Watchmen acaba por ser uma mistura de muitas outras situações que vieram antes. Com a única diferença que Moore, seja na forma de apelações baratas representadas no Dr.Manhathan e uma pseudofilosofia preguiçosa, ou em frases de efeito de Ozzymandias, um dos antagonistas mais precariamente construídos da história, sabe exatamente quais cordões puxar e destacar.
Isto torna Watchmen uma obra ruim? Não! De forma alguma.
Isto seria como se eu dissesse que Mogo, o Lanterna Verde que é um planeta, outra criação de Moore, fosse ruim, só porque o conceito de um planeta como um único ser vivo consciente já tivesse sido mostrado, por exemplo, na animação “Patrulha Estelar 3 - A Crise do Sol”.

Em "Monstro do Pântano", Moore apresenta um texto bem mais maduro que em "Watchmen"

Apenas que todos os pontos que são exacerbadamente bradados pelos “entendidos” na matéria que tornariam Watchmen um suposto “ponto de virada” já haviam sido abordados anteriormente, e sobre os quais o próprio Alan Moore foi bem mais feliz em escrever em outras obras como “Monstro do Pântano”, só para citar um exemplo.


E que “Watchmen” mesmo com suas inegáveis boas características é acima de tudo obra do momento em que foi lançada, a forma como foi promovida e a sagacidade de seu criador em entender como funciona a mente de quem queria atingir, mas que pouco arrisca de fato, por vezes se escorando em cenas que beiram o gore e um glossário recheado de xingamentos para se fazer parecer de transgressora.
E que se contém alguma característica de fato original, foi ter contribuído para o bizarro fenômeno da gourmetização dos quadrinhos.



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