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terça-feira, 8 de dezembro de 2020

Wicked City

 Desde que “Para Sempre Yamato”, lá no hoje longínquo ano de 1980 foi a maior bilheteria dos cinemas nipônicos, que os japoneses se deram conta do potencial que tinham em mãos, e que o cinema de animação, ao menos lá em terras orientais, poderia sim competir de igual para igual com qualquer produção live action.

E nos anos que se seguiram alguns clássicos como “Akira” e “Ghost in the Shell” não apenas marcaram época como se tornaram referenciais para diversas outras obras. Mas mesmo entre tantos títulos lançados em meio a esta onda criativa poucos são aqueles que de fato podem ser caracterizados dentro do seleto grupo da chamada “animação para adultos”, e um destes títulos, produzido em 1987 foi Wicked City...

Ou como ficou conhecido aqui em Terra Brasilis, “Poderes Eróticos”.

Baseado no primeiro de uma série de seis romances, este é o segundo longa dirigido por Yoshiaki Kawajiri, que ao longo dos anos se tornaria um dos maiores nomes da animação japonesa por trabalhos como “Ninja Scroll” e o já resenhado aqui "Cyber City Oedo 808".

Yoshiaki Kawajiri

 E que assina também o roteiro sob o pseudônimo de Kisei Choo, criando uma ótima mistura de terror, ação, ficção-científica com certo clima noir, e lógico, o erotismo que gerou o horrível nome adotado em nossas terras, e que invariavelmente fazia a animação parar na seção de filmes pornôs das antigas locadoras de vídeo.

Na estória, que presumivelmente se passa num “futuro bem próximo”, nosso mundo como conhecemos continuava sua “vidinha” sem saber que dividíamos nossa existência com outra dimensão, chamada de “dimensão escura” (ou “mundo escuro”), que era habitada por seres que numa descrição mais “ocidental” poderiam ser chamados de mutantes, mas que volte e meia são descritos em resenhas na web como demônios.

Criaturas que além de na maioria das vezes serem capazes de mimetizar a forma humana se misturando a nós, possuíam várias outras características que são as principais responsáveis pelos sustos ou surpresas que o longa nos apresenta.

Então o que impediria estes seres poderosos de invadirem e dominar nosso mundo? Um acordo.

Sim, um acordo. Um tratado de não agressão mútua que era renovado a cada duzentos anos.

Mas é obvio que em meio aos habitantes da ‘’dimensão escura”, haviam aqueles que não concordavam com aquela condição, partindo do pressuposto que sendo tão poderosos aquele acordo era uma forma velada de submissão que não poderia ser tolerada.

E logicamente havia em ambos os lados aqueles que eram responsáveis por manter – ou ao menos tentar manter – a ordem que os radicais tentavam destruir, indivíduos conhecidos como a Black Guard (nome também daquele primeiro romance que citei alguns parágrafos acima).

Agentes especiais que viviam suas “vidas normais” até que seus serviços fossem requisitados, como o vendedor de eletrônicos Renzaburo Taki, que no fim de mais um dia de trabalho tinha ido até um bar para tentar desestressar, e enfim consegue ter sucesso com uma garota que vinha paquerando fazia tempo.

Mas a noite de sexo casual de Taki é interrompida e frustrada de uma maneira no mínimo assustadora, quando a moça com a qual dividia a cama revela sua verdadeira forma bem no meio do inter-curso (tá eu sei, a expressão é ridícula, mas este não é um artigo, digamos, corriqueiro do blog).

Uma espécie de mulher aranha com uma vagina cheia de dentes, prontos para mastigar as partes íntimas de Taki, que consegue se safar no último segundo, enquanto o espectador se depara com uma cena que a despeito da conotação sexual foi muito inspirada no clássico “O Exorcista”.

Contudo, quando o espectador pensa que vai assistir um embate entre a “mulher-aranha” e o agente, esta simplesmente diz que já havia conseguido o que queria, enquanto explica que havia trocado de lugar com a moça que Taki pensava ter conquistado, e simplesmente vai embora.

E aqui começamos a ser lançados na principal característica de Wicked City que o difere de outras produções, principalmente as mais atuais, que é seu roteiro extremamente bem estruturado, que consegue desviar a atenção do espectador para tudo que acontece visualmente, enquanto vai costurando sua trama, se aproveitando das recentes liberdades adquiridas na época.

Mas como assim liberdades?

Bem, foi a partir de meados dos anos 1980 que com a ajuda do advento de um certo aparelho chamado videocassete, entre outras coisas, que os japoneses puderam criar com alguma, ou em certos casos muito mais liberdade, um conteúdo que em geral só era mais explícito nos mangás, tanto no que concerne a um viés mais violento quanto de erotização.

Sendo que neste quesito pode ser considerar que o grande percursor tenha sido UrotsukiDoji, ou como os brazucas tão bem conhecem das madrugadas de uma certa rede televisão, “A Lenda do Demônio”, no qual passava cheio de cortes.

O agente Renzaburo Taki...

Só que ao contrário de UrotsukiDoji, realizado um ano antes, e que de fato era uma animação hentai, apenas com um pano de fundo (até meio besta para dizer a verdade) de filme de terror, “Wicked City” a despeito de suas cenas (que óbvio tiveram influência de UrotsukiDoji), nunca perde o foco de sua trama, assim como não descamba para o pornô, mesmo que certas cenas ainda hoje possam chocar plateias desavisadas que não esperam ver determinadas coisas num desenho animado.

...e a agente Mackie...

Trama esta que entrega à Taki a missão de escoltar um chanceler da dimensão escura chamado Giuseppe Mayart, o responsável principal pela renovação do acordo de não agressão que estava prestes acontecer em Tóquio. Porém, desta vez, para tal missão, nosso amigo Taki não estaria só, e para ser sua parceira foi designada uma agente do outro lado, a bela modelo Mackie.

...quase enlouquecem...

...com as loucuras de Giuseppe Mayart.

Contudo, o comportamento (ou seria ausência dele?) do chanceler, simplesmente era a antítese total do que os dois agentes esperavam, já que o ancião de mais de duzentos anos só tinha como pensamentos garotas e sexo, quase enlouquecendo os agentes que tinham a missão de protegê-lo.

E não é que Mayart consegue seu intento, ao fugir do hotel onde era mantido quando este é atacado pelos terroristas da dimensão escura, e vai parar numa casa de massagem na qual acaba vítima de sua lascívia, e da qual é resgatado por Taki e Mackie no último instante antes de suas energias vitais serem drenadas.

Sendo obrigados a levar o chanceler para uma clínica de recuperação da Black Guard fora da cidade. Mas no meio do caminho são atacados, e Mackie se sacrifica para que Taki pudesse fugir com Mayart.

Arrasado, Taki leva Mayart até a tal clínica que era protegida por um campo de energia mental que impedia o acesso dos terroristas, que mesmo assim se manifestam em volta do local, até que é mostrada a Taki a visão de que Mackie não estava morta como pensava, e é desafiado pelo líder dos radicais a tentar resgatá-la. Desafio logicamente aceito, mesmo sob os protestos e xingamentos de Giuseppe Mayart.

E caso você que esteja lendo não tenha visto “Wicked City”, e não tenha muita, digamos, intimidade com as produções nipônicas consideradas adultas, feitas para o mercado de vídeo ou cinema, tenho por obrigação avisar que a sequência que se segue pode te gerar certo nível de desconforto. Pois quando Taki chega ao esconderijo dos terroristas encontra Mackie sendo abusada, e ainda que a cena seja realizada em meio a sombras, dá para se saber exatamente oque estava acontecendo ali.

Algo que passa longe da versão live action feita em 1992 em Hong Kong, que foi produzida (e dizem que em sua maior parte também dirigida) por Tsui Hark.

A versão live action de 1992

Usando então de uma seguidora sua, cuja forma e poder até faz com que o titulo brasileiro da animação faça algum sentido (risos), o líder tenta então retirar da mente de Taki a resposta sobre um certo “complô” que o agente nitidamente de nada sabia e de quebra ainda manda a mulher para a “terra dos pés juntos” ao escapar de seu controle mental, desencadeando o ataque de todos os radicais.


Desafio que apenas as habilidades dos dois agentes juntos parecem não ser capaz de resolver, mas que inesperadamente ganha um auxílio discreto que ninguém sabe de onde veio. Deixando o líder dos radicais ao fim daquela batalha em um estado no mínimo lastimável.

E não é que a mulher-aranha retorna, e diz ao líder que desta vez não falhará, encurralando Mackie e Taki num túnel. E este de fato parece ser o fim de nossos heróis, até que a força misteriosa mais uma vez se manifesta salvando os dois, que são transportados até os pés do altar de uma igreja onde enfim fazem aquilo que todos esperavam que fizessem.

Sim. Eles namoram aos pés do altar, numa cena que num primeiro momento pode ser considerada a “mãe de todas as blasfêmias”, mesmo que de extremo bom gosto e bastante lúdica.

Mas só depois dela é que o espectador é surpreendido com um dos melhores plot twist que já tive o prazer de assistir, seja lá em que mídia for, e as peças de várias situações que pareciam soltas e sem o menor sentido começam a se encaixar de forma perfeita, principalmente quando Mayart revela suas verdadeiras motivações.

Uma sequência final tão boa no amálgama de todos os elementos que compõe a animação que logicamente, não será este humilde escriba que vai tirar seu prazer em ser surpreendido por ela caso ainda não tenha visto esta pérola dos anos 80 e que merece sim ser redescoberta.


 

 

                                             

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