Durante
estes cinco anos de existência do “Enquanto Isso na Ponte de Comando”, tive
sentimentos conflitantes sobre escrever sobre “A História Sem Fim”.
Apesar
de ter uma opinião bem formada sobre a proposta do filme, sempre fiquei
reticente sobre escrever a respeito dele. Contudo, diante da passagem de seu
diretor no último dia 12 de agosto, o icônico Wolfgang Petersen (O Barco,
Inimigo Meu, Na Linha de Fogo), e de me deparar com algumas resenhas
simplesmente horríveis (mas que ainda assim provam que o filme sempre esteve
certo), percebi que a hora tinha chegado.
Baseado
no livro de mesmo nome do alemão Michael Ende, e com roteiro do próprio Ende e
de Petersen, A História Sem Fim nos apresenta a Bastian Balthazar Bux (Barret
Oliver), um garoto solitário, que tem que encarar a barra da perda recente da
mãe, a quase absoluta indiferença do pai, além do bulying dos valentões do colégio, e que procura se refugiar nos
livros e em mundos de ficção para sobreviver a tudo isto.
Até
aí nada demais, como todos nós sabemos, e A História Sem Fim poderia
tranquilamente passar por mais um produto massificado, embrulhado numa capa de
boas intenções e recheado de mais do mesmo.
Mas quando ao fugir de seus agressores, Bastian entra num sebo, e trava contato com um misterioso livro, ao qual malandramente leva consigo para o sótão da escola e começamos a embarcar num dos maiores exercícios de metalinguagem que já vi num filme.
Bastian começa a travar contato com "Fantasia" |
E
que faria a geração acostumada a “Harry Potter” ter o crânio esmagado sob o
martelo invisível do drama, depressão e agonia com o qual o roteiro é
mergulhado. Isto ao mesmo tempo que “conversa” de forma absolutamente proposital com
o mundo real.
E
para quem ainda nos dias de hoje defende a tese que tudo que acontece na
película é uma metáfora para o luto de nosso jovem protagonista, lamento
informar que o buraco é bem mais embaixo.
Pois
se no começo tudo parece um “conto de fadas” no qual somos apresentados a
personagens como um caracol de corridas, ou um gigante comedor de pedras, logo após
sabermos qual seria a “jornada do herói” que Atreyu, o protagonista do
livro deveria cumprir, a coisa começa a mudar um pouco (ou muito) de figura.
A Imperatriz Menina |
Nosso jovem herói precisava viajar até os confins de Fantasia (o mundo do livro) a fim de conseguir a cura para Imperatriz Menina achando uma criança humana para tal, e impedir o avanço de uma entidade chamada de “O Nada”.
Atreyu recebe o Auryn |
Tendo apenas como
“proteção” uma joia, um pingente que lhe é ofertado chamado Auryn, o mesmo
símbolo que adorna a capa do livro.
E a
medida que Bastian vai mergulhando na trama do livro, o filme cria a percepção
que a barreira entre a ficção que lia e a realidade aos poucos se torna mais tênue.
Algo
que poucos percebem (e em razão disto saem por aí escrevendo bobagens), que a
estória trata de Fantasia não como algo fictício, mas sim como uma realidade
alternativa, que apenas existia em função de uma relação simbiótica com nosso
mundo, sendo o livro o portal de ligação.
E
que todo plano da Imperatriz era um grande ardil a fim de atrair a atenção de
alguma criança. Algo bem complicado já naquela época.
E
de certa forma cabe até uma comparação com nosso querido Mestres do Magos, pois
para atrair a atenção de Bastian, Atreyu acaba passando por diversos desafios e
mazelas. Sendo a pior delas sem dúvida a perda de Artax, seu cavalo de
estimação que morre afundando aos poucos na lama do assim chamado Pântano da
Tristeza.
Atreyu tenta salvar Artax |
Do
qual o próprio Atreyu acaba por ser salvo no último segundo por Falkor, o
dragão (como cara de cachorro) da sorte, enquanto sem saber era perseguido por
Gmork, um lobo enorme que havia se tornado uma espécie de arauto do Nada.
Atreyu e Falkor |
Já
tive o desprazer de ler resenhas que tentam desmerecer a trama com alegações
das mais pífias, para não dizer preguiçosas, como o fato do filme ser “muito
triste’’ e “depressivo”, quando na verdade trata justamente da recuperação da
esperança, ao mesmo tempo em que lança um alerta (super atual, diga-se de
passagem) de como as pessoas ao deixarem de sonhar também deixam de realizar. E
que consequentemente passam a ser mais fáceis de controlar pois perdem as
esperanças.
E
aqui entramos naquilo que torna este filme o “Mais Profético de Todos os
Tempos”. Algo que talvez nem o próprio Michael Ende tenha pensado ao escrever
seu livro. E não, não me refiro aqui a nenhum futuro despótico.
O "Nada" ameaça destruir "Fantasia" |
Como
a metáfora do “Nada” viria a se aplicar tão bem aos dias hoje, numa sociedade
que preferiu trocar seus sonhos e realizações pela anestesia da automatização em todas as facetas da vida. Algo mostrado inclusive na indiferença e falas do pai de Bastian na cena do café da manhã.
Questões semânticas (ou nem tão semânticas assim) à parte, “A História Sem Fim” foi a produção mais cara do cinema alemão até então (27 milhões de dólares), superando com folga “O Barco” do próprio Petersen, que obcecado ao extremo por perfeição chegava a fazer quarenta cortes diferentes para uma mesma cena, e isto fez com que as filmagens que deveriam durar só três meses, se estendessem por quase um ano inteiro.
Wolfgang Petersen |
Apesar
de ter colaborado com o roteiro, a relação de Michael Ende com o estúdio e com
Wolfgang Petersen começou a azedar ainda durante as filmagens. Já que o
escritor foi contra várias representações visuais existentes na película, desde
a famosa “cara de cachorro” de Falkor, até a cena das esfinges que soltam
raios, que foram retratadas com seios fartos, um visual que Ende considerava
constrangedor.
Fazendo
o escritor pedir que tirassem seu nome dos créditos e até mudassem o nome do filme,
chegando posteriormente inclusive a processar os produtores, mas perdendo.
Michael Ende e seu livro |
Mais
tarde Ende declarou que ninguém envolvido no filme entendeu coisa alguma que
estava em seu livro. Contudo, ainda que o escritor possa lá ter sua cota de
razão, o que vemos em tela retrata apenas a metade do livro, o que acabou
deixando brecha para uma sequência, que esta sim mexeu bastante no conteúdo
original. Houve até um terceiro filme, mas este é melhor nem comentar.
Steven Spielberg ganhou de Petersen o Auryn original |
O
que pouca gente sabe é que na versão norte-americana, “A História Sem Fim”
recebeu uma ajudinha de Steven Spielberg, que encantado com o filme, ajudou
Wolfgang Petersen a fazer pequenas edições, tirando cerca de sete minutos do
filme à fim de deixa-lo mais ágil para o público estadunidense. Em
agradecimento, Petersen deu para Spielberg o “Auryn” original usado no filme, que está guardado numa redoma de vidro no escritório de Steven.
Passados
quase quarenta anos de seu lançamento “A História Sem Fim” permanece como um
dos filmes de fantasia fantástica mais expressivos de todos os tempos, e que só
cai na rotulação do “infantil” devido a necessidade da própria indústria em
fazê-lo.
Mas
que merece sempre ser revisto de tempos em tempos por aqueles que já o
conhecem, assim como descoberto por novas gerações. Não pelo viés raso do
saudosismo conveniente, mas por que permanece nos dias de hoje mais atual do
que nunca!