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quinta-feira, 4 de fevereiro de 2021

Comboio - A Sessão da Tarde de Sam Peckinpah

Por mais de uma vez aqui no blog, relatei de como a década de 1970 foi disparada a de mais liberdade para os diretores de cinema norte-americanos, quando somado as mudanças sociais e a revolução de costumes, os estúdios que se sentiam ameaçados pelo avanço da televisão passaram a dar mais liberdade para que os diretores realizassem seus projetos.

Foi nesta época que diretores como Francis Ford Copolla, Steven Spielberg, Walter Hill, entre outros, despontaram no horizonte, mas dentre todos, talvez o mais ácido e controverso para aqueles tempos tenha sido Sam Peckinpah.

E através de filmes tensos como “Os Implacáveis”, “A Cruz de Ferro”, “Meu Ódio Será sua Herança” e “Sob Domínio do Medo” cunhou o apelido de “O Poeta da Violência”.


Mas eis que em 1978, Sam Peckinpah dirigiu aquele que é considerado uma espécie de “filme maldito” seu... “Comboio”.

Baseado numa canção country escrita por CW McCall, “Comboio” numa olhada mais descompromissada (como já li algumas vezes) pode parecer seguir a mesma linha de outro filme icônico da mesma época, “Agarre-me Se Puderes” (1977), mas ao contrário do filme protagonizado por Burt Reynolds que era uma comédia descarada e inverossímil, aqui ainda que fazendo um filme mais light, Peckinpah não deixou de deixar sua assinatura.

 
 

Na estória, um caminhoneiro chamado Martin Penwald (Kris Kristofferson), e que tinha o apelido de Pato de Borracha, possuía uma velha rixa com um policial corrupto chamado Lyle Wallace (Ernest Borgnine), com o qual logo de cara fica clara uma relação ambígua, já que ambos se conheciam de longa data, e se consideravam uma espécie de “últimos de uma geração”.


E ao ser parado com mais dois outros caminhoneiros, Mike Aranha (Franklin Ajaiye) e Máquina do Amor (Burt Young, o eterno cunhado de Rocky Balboa) ou Pig Pen como foi “rebatizado” devido à “carga viva” que carregava, são extorquidos por Lyle, iniciando um jogo de gato e rato que toma proporções impensadas.

Lyle provoca Mike Aranha - O momento que precede a desgraça

Já que Lyle os segue até um restaurante no meio da estrada. E lá após ameaçar prender Mike Aranha, e fazer um questionamento sobre quem seria o pai da criança que a esposa do caminhoneiro esperava, tem início um briga generalizada entre os caminhoneiros que estavam no local e os policiais, e na qual até Melissa (Ali McGraw) uma fotógrafa que já tinha se “encontrado” com Pato de Borracha logo no começo do filme se envolve, e que acaba embarcando em seu caminhão.


E o que se tem a partir daí é um dos melhores roadie movies de todos os tempos, com perseguições alucinantes, enquanto que o comboio vai aos poucos através do boca-a-boca via rádio, ganhando mais adesões.

Sanduíche de carro patrulha
 

E a partir daqui Sam Peckinpah começa a deixar sua marca.

Pois com um bom roteiro, que não perde o foco da aventura, o diretor vai costurando uma trama, em que o imenso comboio e seu líder - ainda que Pato rejeite o título – se tornam famosos, ganhando apoio popular e aparecendo na mídia, atraindo obviamente o interesse de políticos que passam a tentar se aproveitar dos caminhoneiros querendo associar sua imagem a deles.

As ações do comboio chamam a atenção da mídia

 

Contudo, mesmo com os holofotes da mídia sobre os caminhoneiros, Lyle não altera seus planos, que ali já tinham ser transformado numa espécie de vendetta pessoal contra Pato de Borracha.

Mas como atingir o agora “blindado” pela mídia líder não declarado do comboio?

Bem, no meio do caminho Mike Aranha recebe a notícia que a esposa estava prestes a dar a luz, e por isto deixa a “segurança” do comboio e parte em direção de casa. Porém, no meio do caminho é capturado, por outro xerife aliado de Lyle, que não poupa esforços para tornar a estada do caminhoneiro ali um inferno, espancando-o brutalmente por conta própria.


E lógico que via rádio a notícia chega ao acampamento dos caminhoneiros, e aos ouvidos de Pato de Borracha, que mesmo sabendo que aquilo era mais que uma provocação, era uma armadilha, deixa Pig Pen no comando das negociações com os políticos, briga com Melissa e vai em ajuda ao amigo.

Até aí o plano de Lyle parecia perfeito, pois o xerife acreditava que Pato de Borracha iria sozinho. Pois é, mas esqueceu de combinar isto com o restante dos caminhoneiros.


E temos aí a sequência mais “Agarre-me Se Puderes” do filme, quando os caminhoneiros invadem a pequena cidade e caçam os policiais por suas ruas, numa daquelas cenas que colocam um sorriso de satisfação no rosto de qualquer um.

E aqui preciso abrir um parêntese para resolução desta sequência quando Mike Aranha é libertado e surge na frente dos amigos todo machucado, porém, sem o menor sentimento revanchista, isenta Lyle de culpa na surra que levou.

Lyle no duelo final contra Pato de Borracha
 

Levando-nos então para sua crucial sequência “quase final”, quando temos o duelo quase ao estilo faroeste entre Lyle e Pato de Borracha.

E é nisto, neste tipo de mescla, que reside o maior mérito de “Comboio”, intercalando com sabedoria e na dose exata, cenas mais densas e dramáticas, com outras de ação que beiram a comédia.

Melissa e Pato de Borracha - Química perfeita.

Fora a ótima química entre o casal de protagonistas que já haviam trabalhado com o diretor antes. Kris em “Meu Ódio Será Sua Herança” e Ali em “Os Implacáveis”.

Sam Peckinpah até faz uma ponta como operador de áudio

E que tem até um cameo do próprio diretor como operador de áudio da tevê.

Coisa que fez a grande massa das críticas na época bombardear o filme e seu diretor, soltando frases absurdas de que Peckinpah tinha “perdido a mão”, que teria realizado o filme apenas para “fazer caixa”, ou ainda pior, apelando para aspectos pessoais de sua vida como o alcoolismo e uso de drogas.

Sam Peckinpah

É certo que “Comboio” pode até não ser o filme mais lembrado de Sam Peckinpah, mas ao revisitar sua filmografia, fica claro o quanto este, é uma declaração do diretor as liberdades individuais, o sentimento de irmandade e mais que qualquer outro, bem no espírito daquela época, uma crítica ao sistema em que vivemos.


Servindo-nos com maestria uma receita que vários outros filmes, e até franquias inteiras, tentaram replicar, mas que vai muito além de estereótipos de anti-heróis e um sistema injusto, pois estes são ausentes da alma que fez “Comboio” ser legitimado no seleto hall dos melhores filmes antissistema de todos os tempos.