Páginas

terça-feira, 10 de dezembro de 2019

Os Sete Samurais e seus filhos (parte 2)


No artigo anterior havia contado como a obra de Akira Kurosawa tinha sofrido a influência dos westerns do diretor norte-americano John Ford, e como seus filmes, talvez por causa disto, não eram lá muito bem vistos em sua pátria na época. O sucesso alcançado fora do Japão, e lógico, o outro grande clássico que gerou, “Sete Homens e Um Destino”.
Mas as versões de “Os Sete Samurais” estavam bem longe de terminar, ganhando panos de fundo impensados até para mente criativa do diretor nipônico.


Final da década de 1970, o cinema mundial tinha sido virado de cabeça para baixo com o surgimento de “Guerra nas Estrelas”, e eis que alguém teve a ideia de transpor a premissa do vilarejo atacado por mal feitores para o espaço.
E por meio do produtor Roger Corman, em 1980 chegava “Mercenários das Galáxias”.

O produtor Roger Corman espertamente transpôs o roteiro original para o espaço

O roteiro original, transposto para o espaço, trazia John Saxon no papel de Sador (por favor, não confundam com Sandor da Patrulha Estelar), um ditador espacial com intenções expansionistas, que resolve anexar aos seus domínios um pequeno planeta chamado Akira (é isto mesmo, maior homenagem impossível).

John Saxon era Sador

As pessoas de Akira tinham abandonado a violência fazia décadas, e apenas um ancião cego, Zed (Jeff Corey) era o último sobrevivente desta época, e incentiva o jovem Shad (Richard Thomas, o John Boy de Waltons), a procurar mercenários que pudessem defender Akira. Shad então embarca numa velha nave que tinha uma inteligência artificial chamada Nell, e parte na busca. Só não me perguntem por que colocaram “seios” na nave (risos).


Aqui é preciso abrir um pequeno parêntese para falarmos do grupo que acaba se formando das mais diferentes maneiras possíveis e que de todas as versões de “Os Sete Samurais” é o mais heterogêneo.
Nanelia (Darlanne Fluegel) era a filha de um cientista, antigo amigo de Zed, que vivia numa estação espacial. Só que o velho cientista (ou o que sobrou dele), não estava nem aí para o destino do planeta de Shad, o aprisionando para que procriasse com sua filha. Pois é, simples assim. Lógico que Nanelia acaba mais a frente se tornando o par romântico de Shad. E óbvio que o ajuda a escapar, ajudando-o também na sua busca.


Só que nesta busca Nanelia se dá mal e acaba sendo capturada por Cayman da Zona Lambda (Morgan Woodward), um dos últimos de uma raça de seres repteis, que para a sorte da jovem tinha questões pessoais para acertar com Sador.
Do outro lado da galáxia, Shad acaba por salvar a vida do Cowboy do Espaço (nosso conhecido George Peppard, aqui pouco antes de se tornar o Coronel Hannibal Smith de Esquadrão Classe A). Um sujeito “gente boa”, egresso daqui de nosso planetinha azul, que ninguém fazia ideia que existia naquela parte do espaço (risos), e para o qual é destinado a reprise do romance entre o guerreiro e camponesa, mas que aqui sabiamente (mesmo passando muito longe do drama das versões anteriores) é protagonizado por duas pessoas mais maduras, saindo da cópia do arquétipo do casal de jovens.


E que se junta à causa por gratidão, e por segundo o mesmo, não ter o que fazer com carga de armas laser que levava para um planeta que foi exterminado por Sador, quando o vilão fez uso da arma principal de sua nave, o conversor estelar. 
Ao que parece não foi apenas “Os Sete Samurais” a única inspiração nipônica do filme, já que é impossível assisti-lo e não fazer a correlação da arma de Sador com a “arma de movimento de ondas” do Yamato em Patrulha Estelar.

Gelt (Robert Vaugh) atrai a atenção das crianças de Akira

Aqui também é preciso destacar a presença de Robert Vaugh como Gelt. Sim, ele mesmo, o Lee de “Sete Homens e Um Destino”, também está aqui, e num papel que de certa referencia o de Charles Bronson em “Sete Homens...”, pois quando Shad o encontra, este argumenta de o quanto caro era para contratar seus serviços. Contudo, acaba aceitando a proposta do rapaz, pelos motivos mais plausíveis de se pensar, para alguém que tinha a cabeça a prêmio em vários sistemas estelares.
Sem falar que assim como o Bernardo de Charles Bronson em “Sete Homens...”, aqui Gelt também acaba por atrair a atenção das crianças de Akira com seu jeito calado e soturno.


E para completar o heterogêneo grupo, há ainda Saint-Eximin (Sybil Danning), vinda de uma nação de mulheres guerreiras, as valquírias, com um lema de vida tão doido quanto funcional.


E Nestor, um ser que na verdade era uma única consciência que habitava vários corpos (clones).

 LINK DOWNLOAD

Já li e escutei algumas opiniões equivocadas sobre este ótimo filme B, que chegam a serem infantis em suas alegações. E ainda que baseado em uma obra relevante do cinema mundial é preciso entender que “Mercenários das Galáxias” em nenhum momento aspira ser mais do que realmente é, uma despretensiosa aventura, com seus exageros e até certo grau de caricaturismo, mas que aqui estão muito bem inseridos no contexto. E não é uma ou outra dificuldade técnica, que desmerecem este filme que leva o “DNA” de Roger Corman sem a menor neurose, e que merece sim o selo de cult.


Mas se você que está lendo acha que o bom (ou talvez nem tão bom assim) cinema de ação estadunidense ficaria de fora, vou te dizer que não, e em 1997 vem ao mundo “Os Especialistas” (The Bad Pack no original).


O filme estrelado por Robert Davi (que devia estar meio cansado de só fazer papel de vilão) e vários outros rostos conhecidos, mas que nunca nos recordamos dos nomes (risos) repete a velha formula nipônica do vilarejo, mas ao contrário do filme-mãe e de seu irmão faroeste, “Bad Pack” seja pelo elenco mais ou menos de atuações sofríveis, e a produção aqui de fato pobre, talvez só sirva mesmo para uma “Sessão da Tarde” de quarta-feira quando se está gripado.
E por fim temos a versão infantil de “Os Sete Samurais”.
Versão infantil? Sim.
Versão infantil, que atende pelo nome de “Vida de Inseto”. E aqui é maravilhoso perceber o quanto que aquela premissa simples, é genial!


Todos os elementos que citei até agora, não só da obra primária de Kurosawa como de suas versões “velho oeste” e “espacial” se amalgamam aqui. E nos brindam com uma produção que apesar de ser pensada para o público infantil, possui bem mais camadas que seu dito público-alvo talvez consiga captar.
Uma grata surpresa que tive, pois julgava ser mais uma produção feita para crianças dispersas de pais relapsos, e me deparei com uma excelente adaptação.


Não que Kurosawa não tenha criado (sim, criado, pois ele não apenas dirigia como escrevia o roteiro e até editava), outros filmes que ganharam diversas versões. Como “Yojimbo”, que o diretor Sergio Leone transformou em faroeste com “Um Punhado de Dólares”, e Walter Hill em filme de gangster com “O Último Matador”.
Mas nenhuma outra obra sua conquistou tantos e em tantas partes do mundo, quanto aquela dos sete guerreiros que juntos, seja lá por qual razão, partem para defender aqueles que não conseguem se defender por si. Genial em sua simplicidade.


Mas uma simplicidade com alma. Uma simplicidade que encanta sem ser pueril. Que faz o espectador se importar e torcer por aquele personagem na tela, e que precisa ser resgatada nestes dias em que o cinema parece dividido em “filmes sérios” e “filmes pipoca”, mas que no fim das contas acabam nunca sendo relevantes no lugar onde de fato importam, ou seja, nossas memórias.

segunda-feira, 2 de dezembro de 2019

Os Sete Samurais e seus filhos (parte 1)


Muito ao contrário do que boa parte da crítica durante anos tentou passar, Akira Kurosawa jamais foi um daqueles diretores sem rumo pseudocultos que pregava o “discurso de ódio” ao cinemão hollywoodiano, ainda que pudesse ter uma série de ressalvas sobre o mesmo, tendo sido um grande admirador dos westerns (nosso bom “faroeste”) do norte-americano John Ford.
E que ao contrário do que muitos pensam, penou para conseguir o reconhecimento em seu próprio país, no qual por uma série de razões, seu cinema era considerado muito “americanizado”.
Contudo, após vencer o Leão de Ouro em 1951 no Festival de Veneza por “Hashomon”, Kurosawa ganhou moral e partiu para o filme que de fato marcaria seu nome o inconsciente popular, “Os Sete Samurais”.



Estamos no ano de 1954, e o Japão ainda tentava se recuperar dos estragos e feridas deixados pela Segunda Guerra Mundial, enquanto brigava para manter sua identidade cultural em meio à “colonização” que foram obrigados a sofrer após a derrota na guerra.
Sendo que neste mesmo ano, outro grande clássico do cinema nipônico ganhava as telas, Godzilla.

O jovem Kurosawa e seu elenco nos bastidores de "Os Sete Samurais"

E é neste cenário que o diretor Akira Kurosawa vem a dirigir aquele que se tornaria não apenas seu filme mais famoso, mas também o mais copiado. Um western que trocava os revólveres e carabinas pelas espadas katanas e que se tornou fonte de inspiração para diversas outras produções.
Então, talvez possamos dizer que ainda que estando em extremidades opostas, o filme de Kurosawa junto ao de Inishiro Honda, fizeram de 1954, o ano em que o mundo descobriu o cinema japonês.



Na história, de estrutura bem simples, mas maravilhosamente bem desenvolvida, um vilarejo de agricultores a beira do desespero, que vinha sendo atacado consecutivamente por um grupo de bandidos, que não apenas roubavam toda a produção de alimentos dos camponeses, como os submetiam a um regime constante de terror, decide contratar guerreiros para defendê-los, isto numa época do Japão conhecida por “Era Sengoku”, na qual guerras entre clãs de senhores feudais rivais tomavam quase todo o arquipélago nipônico.
E tendo apenas como proposta de pagamento para estes guerreiros nada mais que comida. Um artigo de luxo se pensarmos num país do século XVI que vivia em meio a um caos sócio/ bélico.



A partir do encontro com Kambei Shimada (Takashi Shimura), o grupo de “ronins” (samurais sem um senhor) vai se formando, com destaque para Kikuchiyo (Toshiro Mifune), que na verdade era apenas um aspirante a samurai, escondendo sua real origem que era de filho de trabalhadores rurais como os que defenderiam. Papel que reza a lenda urbana, Mifune incorporou vinte quatro horas por dia durante todo o período das filmagens, tornando-o uma celebridade, e até abrindo as portas de Hollywood para o ator.
Filmagens que custaram o absurdo e irreal valor de quinhentos mil dólares, uma verdadeira fortuna para os padrões nipônicos da época.
Na época o filme foi muito atacado em seu país, pelos motivos já explicados acima, contudo, o “western from the east” com espadas, passou a encantar plateias ao redor de todo mundo.
Iniciando uma série de “versões” que sem o menor pudor usavam da premissa simples, mas igualmente genial do roteiro, para desenvolver a história em outros contextos de pano de fundo.


O elenco de "Sete Homens e Um Destino"

A primeira, mais famosa, e sem dúvida a melhor destas versões veio apenas seis anos de após a obra original, e dentro do contexto mais óbvio possível, um faroeste.
Em “Sete Homens e Um Destino”, o diretor John Sturges comanda a história de um vilarejo mexicano que vem sendo aterrorizado pelo bando liderado por Calvera (Eli Wallach). E como no filme original, os líderes do vilarejo vão atrás de homens, neste caso pistoleiros, que pudessem defendê-los da ameaça.



Encontrando primeiramente Chris (Yul Brynner) e Vin (Steve McQueen) que aceitam a proposta dos camponeses, e que vão atrás dos demais membros da equipe que ainda tinha Britt (James Coburn) e Lee (Robert Vaugh).



Mas ao menos no entendimento deste escriba, o destaque vai para Bernardo O’Reilly, interpretado por um jovem Charles Bronson, um ano antes de seu primeiro papel principal em “Avião Foguete X-15” e catorze anos antes de “Desejo Matar”. Interessante que aqui como o personagem de Toshiro Mifune, o personagem de Bronson também tentava esconder sua origem, só que por um viés não apenas mais intrincado, mas também bem atual, já que o personagem era um mestiço.
Que se incomodava com certa falta de identidade própria, que pode ser resumida na fala: “... este maldito nome, de um lado mexicano, do outro lado irlandês, e eu no meio.”.


Bernardo (Charles Broson) acaba por atrair a curiosidade das crianças do vilarejo

Mas ao mesmo tempo uma condição que atrai justamente a atenção das crianças do vilarejo, curiosas como o sujeito misterioso, de poucas falas, mas que se parecia muito com eles.



O interessante é que ao que parece, percebendo isto, a semelhança entre os personagens de Mifune e Bronson, resolveram juntar ambos os atores em 1971 num faroeste que misturava oriente com ocidente.
Era Red Sun - Sol Vermelho.



Uma história na qual ambos praticamente reprisavam seus arquétipos anteriores, se considerarmos, lógico, as devidas proporções do roteiro. Um roteiro aparentemente louco, mas que funciona muito bem, sobre o roubo de uma valiosa espada, e de um acordo que acaba por unir os dois na procura pelo personagem do francês Alain Delon.


Apesar de um bom filme, o remake de "Sete homens..." não repete a magia do original

Em 2016, Antoine Fuquá veio a dirigir o remake de “Sete Homens e Um Destino”, mas que não chegou nem perto do clássico de 1960, que seja pela ótima construção de seus personagens, a forma como o roteiro trabalha as relações interpessoais de todos (quase tão bem quanto a obra de Kurosawa), seu final respeitosamente praticamente idêntico ao da obra inspiradora, sem falar no icônico tema composto por Elmer Berstein, se tornou um dos melhores westerns de todos os tempos, e que só foi maculado quando resolveram fazer inúteis continuações
.

Tão bom que até o próprio Akira Kurosawa afirmou ter gostado do resultado.
Porém, as adaptações de “Os Sete Samurais” estavam bem longe de acabar, mas isto vai ficar para a segunda parte de como o clássico de Kurosawa mudou a cara do cinema. Até lá!